15 outubro 2024

A Decisão do TEDH (375)

 (Continuação daqui)




375. Peter Boone


Foram ontem anunciados os galardoados com o Prémio Nobel da Economia de 2024 (cf. aqui). São três economistas norte-americanos, confirmando a regra, que deixei expressa no último post (cf. aqui), de que nunca um economista vivendo em algum dos países católicos do sul da Europa ou nos seus descendentes da América Latina foi distinguido com este galardão.

Na realidade, fui mais longe e fiz uma previsão - a de que um economista vivendo num qualquer destes países católicos, que alguma vez fosse candidato ao Prémio Nobel, antes de receber o Prémio seria posto na prisão.

Ora, quanto a esta previsão estive próximo de acertar.  O economista em causa não é português nem espanhol,  italiano, brasileiro, argentino ou mexicano. É inglês e chama-se Peter Boone. Não ganhou o Prémio Nobel, mas é autor de artigos escritos em parceria com um dos Prémios Nobel deste ano, Simon Johnson. E já o quiseram pôr na prisão. E quem o fez foi o Ministério Público de Portugal.

A história é hoje relembrada pelo ECO: cf. aqui.

Em 2010, Boone e Johnson escreveram um artigo  num blogue do New York Times a prever que, a seguir à Grécia, seria Portugal, na altura governado por José Sócrates, a entrar em colapso financeiro, uma previsão que se viria a revelar acertadíssima.

Boone era consultor de um Fundo de Investimento que pôs dinheiro onde Boone só tinha posto a boca, e "shortou" os títulos da dívida pública portuguesa, vendendo a descoberto e comprando mais tarde a um preço mais baixo, ganhando pelo caminho mais de 800 mil euros.

Brilhante!, diria eu.

Crime!, disse o Ministério Público.

Vai daí o DIAP de Lisboa abriu um processo crime contra Boone por manipulação de mercado, um crime com uma pena que pode ir até 5 anos de prisão, acusando-o de, com o seu artigo no blogue, ter deitado abaixo o mercado da dívida pública portuguesa e, de seguida, ter beneficiado com isso.

Como se um artigo de blogue pudesse deitar abaixo um mercado... 

Peter Boone só se livrou da acusação no Tribunal da Relação de Lisboa. 

Era o ano de 2015, o ano da caça aos economistas liberais por parte do Ministério Público, e com uma certa tendência para os Peter's. Foi nesse mesmo ano, que o DIAP, desta feita no Porto, aceitou a queixa-crime que viria a dar origem à Decisão do TEDH Almeida Arroja v. Portugal.

A comparação deixa-me roído de inveja. O Fundo de que Boone era consultor encaixou 800 mil euros com a operação, ao passo que eu andava a gastar do meu dinheiro (e de outros mecenas) para fazer um hospital pediátrico que o Estado português há anos não fazia. 

A estupidez, o provincianismo, a avidez quando cheira a dinheiro, a total incompreensão do valor social do risco e da especulação, a cultura justiceira, persecutória e inquisitorial que não conhece fronteiras destes caluniadores profissionais, criminosos oficiais, especialistas em criminalizar inocentes. Eis o Ministério Público português, cuja merecida reputação, em ambos os casos, conseguiu chegar a Nova Iorque (cf. aqui).

A DITADURA DOS CONFORMISTAS

A democracia pode tornar-se opressiva quando uma maioria usa o seu poder para esmagar os direitos das minorias e até cancelar as suas vozes. Tocqueville foi o primeiro a articular este conceito a que chamou ditadura da maioria ou tirania da maioria, na sua obra: “Democracia na América” (1835/1840).

 

John Locke e James Madison já tinham manifestado preocupação com os direitos das minorias e a “Bill of Rights” de 1789 (ano da Revolução Francesa) destinou-se precisamente a constituir um travão a impulsos tirânicos das maiorias democráticas.

 

Quando analisamos a história dos últimos quatro anos constatamos que Tocqueville foi profético e que nem sequer o sistema de travões e contrapesos da Constituição dos EUA (1788) foi suficiente para travar os governos democráticos na supressão dos direitos naturais das minorias.

 

A arquitectura política dos EUA permitiu que os partidos se aproveitassem de brechas legais (loopholes) para contornar a “Bill of Rights” e instituir, por essa via, uma clara e indesmentível tirania. As brechas são a guerra: guerra ao terrorismo, guerra ao SARS-CoV-2, guerra ao aquecimento global e até a guerra à desinformação. Ora, em estado de guerra, a Lei assume um estatuto secundário.

 

Na Europa passou-se exactamente o mesmo através da invocação do supremo interesse nacional e/ou do Bem Comum.

 

Penso que não são necessários exemplos concretos de abusos de Estado, porque estão à vista de todos. O seu volume é, em termos qualitativos e quantitativos, tão significativo que nos permite questionar se no Ocidente ainda restam vestígios da tão proclamada Democracia Liberal e Capitalista.

 

Analisando a composição política das ditaduras da maioria compreendemos que não reflectem a vontade de cada simples eleitor. São, por assim dizer, um produto agregado de múltiplas vontades, que encontrou um denominador comum.

 

A DITADURA DOS CONFORMISTAS (no título) é uma forma de tirania da maioria, mas diferente do conceito de Tocqueville.

 

O Estado utiliza as alavancas do poder para disseminar narrativas destinadas a formatar a opinião pública e a obter conformismo com as premissas propagadas, garantido depois o apoio eleitoral para as políticas de abuso dos direitos individuais das minorias.

 

Enquanto na ditadura da maioria do Tocqueville, os abusos de poder reflectem o máximo divisor comum de ideias diversas, no meu conceito de ditadura dos conformistas os abusos reflectem narrativas do Estado apoiadas por uma maioria submetida a lavagem cerebral.

 

Claro que o Estado é representado por pessoas e quando essas pessoas promovem narrativas que, em última instância, as vão beneficiar, a ditadura dos conformistas transforma-se na ditadura da oligarquia política e dos seus esbirros.

 

Enquanto a ditadura da maioria é uma pecha da democracia representativa, a ditadura dos conformistas é o regresso a uma espécie de feudalismo que exerce o seu poder sobre uma plebe de escravos agrilhoados mentalmente.

 

É neste contexto político que estamos a viver.

 

 

 

13 outubro 2024

CONFORMISMO NEGRO

 


A DITADURA DOS CONFORMISTAS — Uma oligarquia de fachada democrática

 

O meu interesse pela moda do negro tem pouco a ver com a moda, algo que não acompanho. Despertou-me a atenção foi ver tantas pessoas vestidas de negro, uma cor (ou ausência de cor) conotada com emoções e sentimentos negativos, como o luto, a dor e a guerra.

 

As pessoas submetem-se à escravatura da moda para alardear a pertença a um clube, a uma tribo. Sucede o mesmo na guerra e no desporto; os batalhões têm as suas cores e o seus ícones para reforçar o espírito da tribo, tal como os clubes desportivos.

 

Alguém quer pertencer a um clube conotado com sentimentos e ideias negativas? A resposta a esta pergunta é um claro SIM! Mais vale ser membro de um clube problemático do que não pertencer a clube nenhum. É a natureza social do Sapiens, o homem isolado não é nada.

 

Na moda, há anos que se manifestavam tendências miserabilistas, como calças rasgadas e T-shirts de farrapos. Agora chegou a vez do negro, do luto colectivo.

 

Há muitas razões para os ocidentais se sentirem deprimidos: o niilismo, as sucessivas crises económicas, a inflação galopante (o imposto dos pobres), a pandemia da C19 e mais recentemente a ameaça de guerra. Perante tudo isto, vestir de negro pode parecer apropriado.

 

A moda sempre teve seguidores, a natureza quantitativa do fenómeno do negro é que surpreende. Para mim é a hipérbole do conformismo.

 

As democracias liberais estiveram sempre ameaçadas pela “ditadura da maioria”, quando a maioria democrática subjuga as minorias. Essa ditadura, contudo, é um produto agregado de vontades individuais.

 

Numa sociedade com elevado grau de conformismo, a ditadura da maioria é um fenómeno diferente: é a ditadura das elites a que os conformistas se subjugam. Para evitar confusões sugiro que se crie a designação de “ditadura dos conformistas”, que é apenas o “veículo democrático” para a ditadura da elite oligárquica – a ditadura dos donos da moda, do bom gosto e da ciência.

 

A ditadura dos conformistas, é o fim da democracia como a conhecíamos e o regresso a um certo feudalismo aplaudido e suportado pelos conformistas. Um feudalismo de máscara democrática suportado pelos conformistas.

 

Há muito que a democracia tinha demonstrado debilidades – “Democracy, the God that Failed”, Hans-Hermann Hoppe (2001). O que me parece curioso é que sejam os conformistas a dar-lhe o golpe de misericórdia.


10 outubro 2024

A Decisão do TEDH (374)

 (Continuação daqui)



374. Antero de Quental

Num post anterior referi um acontecimento marcante da repressão à liberdade de expressão em Portugal - o encerramento das Conferências do Casino em 1871.

Esse encerramento foi decretado depois da apresentação por Antero de Quental de um brilhantíssimo ensaio com o título "As causas da Decadência dos Povos Peninsulares" (cf. aqui) onde, retomando ideias desenvolvidas por Alexandre Herculano - o maior intelectual liberal português do século XIX - apresentava um certíssimo diagnóstico acerca da perda de influência de Portugal e Espanha no mundo a partir do século XVI.

A repressão às ideias e à inteligência de que falava Antero fez com que a mesma tese viesse a ganhar reconhecimento internacional, não com o seu nome, mas com o nome do sociólogo alemão Max Weber no livro "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo". Por cá, uns anos antes, Herculano dava o último suspiro proferindo a célebre frase "Isto até dá vontade de morrer" e Antero punha fim á própria vida num banco de jardim de Ponta Delgada, nos Açores.  

Antero é implacável em relação aos jesuítas, e são os jesuítas que estão hoje de volta, mais influentes do que nunca, na figura do Papa Francisco e, a nível doméstico, em figuras com o porta-voz laico da Igreja Católica, o juiz Pedro Vaz Patto, que pertence a uma movimento católico que já apelidei como "os jesuítas de saias" (cf. aqui).

A ciência moderna é também um tema central no ensaio de Antero e esta semana têm estado a ser anunciados os Prémios Nobel da Ciência. Como é habitual, não existe um só oriundo dos países católicos do sul da Europa (Portugal, Espanha ou Itália) ou dos seus descendentes na América Latina. Mesmo a Economia, cujo Nobel foi instituído em 1968, nunca teve um só laureado oriundo destes países.  (Neste último domínio, eu receio que qualquer economista capaz de ganhar o Prémio Nobel em algum destes países católicos, antes de o conseguir, acabaria na prisão).

É este o legado do catolicismo contra a cultura e as instituições de uma sociedade livre - um deserto científico e de ideias. E, não conseguindo sobrepor-se pela força das ideias, sonha em pôr os liberais na prisão, na década de 1870, como agora, passados 150 anos.

Felizmente, agora existe o TEDH e outras instituições liberais internacionais (cf. aqui) para contrariar aquele que é para Fernando Pessoa, e também para Salazar e para mim próprio, o maior defeito da cultura portuguesa, também ele associado à cultura católica saída do Concílio de Trento - o seu provincianismo.  

Os primeiros parágrafos do ensaio de Antero são um verdadeiro pedido de desculpa  por aquilo que vai dizer. E aquilo que ele tinha para dizer era verdade, uma verdade que, com mais ou menos intensidade, ainda hoje se mantém. Logo a seguir, o governo proibiria as Conferências do Casino. Disso se encarregou o Procurador-Geral da Coroa, Martens Ferrão. Na altura, a Inquisição já tinha dado lugar ao Ministério Público, que permanece até hoje a mais anti-liberal instituição portuguesa.

Eis algumas frases contendo teses centrais do ensaio:

*Nunca povo algum absorveu tantos tesouros, ficando ao mesmo tempo tão pobre!

*Nos últimos dois séculos não produziu a Península um único homem superior, que se possa pôr ao lado dos grandes criadores da ciência moderna: não saiu da Península uma só das grandes descobertas intelectuais, que são a maior obra e a maior honra do espírito moderno.

*A religião deixa de ser um sentimento vivo; torna-se uma prática ininteligente, formal, mecânica. ... A Inquisição pesava sobre as consciências como a abóbada dum cárcere. O espírito público abaixava-se gradualmente sob a pressão do terror...

*Ora, a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do Catolicismo do Concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus.

*O cristianismo é sobretudo um sentimento: o catolicismo é sobretudo uma instituição. Um vive da fé e da inspiração: o outro do dogma e da disciplina.

*As nações mais inteligentes, mais moralizadas, mais pacíficas e mais industriosas são exactamente aquelas que seguiram a revolução religiosa do século XVI: Alemanha, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, Suíça. As mais decadentes são exactamente as mais católicas!

*Sim, meus senhores! essa máquina temerosa de compressão, que foi o catolicismo depois do Concílio de Trento, que podia ela oferecer aos povos? A intolerância, o embrutecimento, e depois a morte!

*O catolicismo pesou sobre nós por todos os lados, com todo o seu peso. Com a Inquisição, um terror invisível paira sobre a sociedade: a hipocrisia torna-se um vício nacional e necessário: a delação é uma virtude religiosa (...)

* (...) o ideal da educação jesuítica é um povo de crianças mudas, obedientes e imbecis.

*Há em todos nós, por mais modernos que queiramos ser, há lá oculto, dissimulado, mas não inteiramente morto, um beato, um fanático ou um jesuíta!

*(...) as nações modernas estão condenadas a não fazerem poesia, mas ciência. Quem domina não é já a musa heróica da epopeia: é a Economia Política, Calíope dum mundo novo, senão tão belo, pelo menos mais justo e lógico do que o antigo.

*Domina todo este assunto uma lei económica, formulada por Adão Smith, um dos pais da ciência, nas seguintes palavras: «o capital adquirido pelo comércio e pela guerra só se torna real e produtivo quando se fixa na cultura da terra e nas outras indústrias.»

*A tradição, num símbolo terrivelmente expressivo, apresenta-nos Camões, o cantor dessas glórias que nos empobreciam, mendigando para sustentar a velhice triste e desalentada. É uma imagem da nação.

*Só o trabalho livre é fecundo: só os resultados do trabalho livre são duradoiros. Das colónias, que os Europeus fundaram no Novo Mundo, quais prosperaram? quais ficaram estacionárias? Prosperaram na razão directa do trabalho livre: o Norte dos Estados Unidos mais do que o Sul: os Estados Unidos mais do que o Brasil.

*A Austrália tem feito em menos de 100 anos de liberdade o que o Brasil não alcançou com mais de três séculos de escravatura! Fomos nós, foram os resultados do nosso espírito guerreiro, quem condenou o Brasil ao estacionamento (...)

*As causas, que indiquei, cessaram em grande parte: mas os efeitos morais persistem, e é a eles que devemos atribuir a incerteza, o desânimo, o mal-estar da nossa sociedade contemporânea. À influência do espírito católico, no seu pesado dogmatismo, deve ser atribuída esta indiferença universal pela filosofia, pela ciência, pelo movimento moral e social moderno (...). Já não cremos, certamente, com o ardor apaixonado e cego de nossos avós, nos dogmas católicos: mas continuamos a fechar os olhos às verdades descobertas pelo pensamento livre.

*Que é pois necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização? para entrarmos outra vez na comunhão da Europa culta? É necessário um esforço viril, um esforço supremo: quebrar resolutamente com o passado.

(Continua acolá)

09 outubro 2024

WHAT'S IN A JOKE?

 



Humor is often at the center of complex legal cases and content moderation decisions regarding free speech and its limits. How can judges – or social media platforms – navigate the gray areas between satire and defamation, provocative jokes and hate speech, or parody and copyright violation? These challenges have become increasingly daunting in the digital age, with ironic ambiguity and context collapse playing a key role in online communication. Moreover, generative AI (e.g. deepfakes) has further muddled the line between legitimate creative reuse on the one hand (as in parody or satire), and the violation of personal or IP rights on the other.

These issues lie at the center of the forthcoming toolkit What’s in a Joke? Assessing Humor in Free Speech Jurisprudence and Content Moderation, authored by Alberto Godioli (University of Groningen), Sabine Jacques (University of Liverpool), Ariadna Matamoros Fernández (Queensland University of Technology), and Jennifer Young (University of Groningen) with funding from the Dutch Research Council (NWO Impact Explorer grant). The toolkit is primarily intended for legal professionals and Trust & Safety agents, with the aim of helping them establish an informed, well-balanced, and consistent approach to humorous expression in light of both human rights law and interdisciplinary humor research. However, it will also be of interest to policymakers and advocacy groups, by addressing topical questions concerning both the protection of lawful humorous expression and the adjudication of illegal or borderline (albeit superficially humorous) content. Lastly, it aims to assist humor creators of all types – from comedians and cartoonists to ‘ordinary’ social media users – in gaining awareness of their rights, while also highlighting the links between certain types of derogatory humor, hate, and harm.

On October 25, 2024, the toolkit authors will join us at Columbia University to present an advanced draft of the toolkit and collect feedback before finalizing its publication, which is scheduled for January 2025. The authors’ presentation will focus on the four main sections of the toolkit: I. Interpreting humor in context, II. Authoritarian crackdowns on humor and satire, III. Humor, online harm and content moderation, and IV. Humor and Intellectual Property law.

The presentations will be followed by an open Q&A and a roundtable with four members of the project’s Advisory Board, namely Lady Justice Stella Isibhakhomen Anukam (African Court on Human and Peoples’ Rights), JUDr. Barbora Bukovská (ARTICLE 19), Mehdi Benchelah (UNESCO), and Judge Darian Pavli (European Court of Human Rights).

This event is co-sponsored by Columbia Global Freedom of Expression, The University of Groningen, The Dutch Research Council (NWO), and The Forum for Humor and the Law (ForHum).

08 outubro 2024

A Decisão do TEDH (373)

 (Continuação daqui)



373. Uma saudável aversão ao poder político


A Igreja Católica está sempre pronta a dormir na cama com qualquer poder político (cf. aqui). Este fascínio pelo poder é uma das características mais marcantes do carácter anti-liberal da cultura católica e uma das que menos tem sido enfatizada.

Ela está presente no caso Almeida Arroja v. Portugal e põe em contraste a cultura católica portuguesa com a cultura protestante que enforma a CEDH e a jurisprudência do TEDH.

Quem, em Portugal, difamar o seu vizinho está sujeito a uma pena que, em geral, será de multa, mas que, em caso de reincidência, pode ir até dois anos de prisão. Isto é assim se o vizinho fôr um cidadão comum. 

Porém, se o vizinho fôr um agente do Estado como um deputado, um magistrado, um presidente da Câmara, um advogado ou até o chefe da repartição de Finanças, aí, o caso muda de figura, estamos a falar de gente importante. Aí, a difamação passa a ser agravada e as penas são aumentadas em 50%, significando que, no limite, podem ir até três anos de prisão.

Ora, eu tive a infeliz ideia de ofender um cara que era ao mesmo tempo deputado e advogado, para além da própria sociedade de advogados a que ele pertencia.  Não se faz a ninguém, muito menos a um cara como este. É difamação agravada. Apanhei uma pena de multa elevadíssima, 350 dias a 20 euros ao dia, num total de 7.000 euros. Da próxima vez, se não fosse o TEDH,  iria de certeza para a prisão.

É muito diferente da católica a maneira como a cultura protestante, que esteve na origem da sociedade livre, olha para o poder político. Fá-lo com desconfiança. E porquê? Porque são as pessoas que detêm alguma forma de poder aquelas que maior mal podem produzir às outras, e as figuras de Hitler ou Estaline ocorrem imediatamente ao espírito. O poder político é um mal necessário, é certo, mas, ainda assim, é sempre um mal.

A Igreja Católica vê o poder político como um concubino e, na verdade, a história da Igreja Católica não é outra coisa senão uma relação de concubinato com o poder político. Daí a permanente bajulação desta cultura em relação ao poder político, concedendo-lhe privilégios, ou isentando-o de ónus, que não concede ao cidadão comum. Pelo contrário, a cultura protestante e de uma sociedade livre olha para o poder político como uma ameaça, exigindo que ele sirva a sociedade, e não que se sirva dela, e submetendo os seus agentes a exigências de comportamento muito mais severas do que aquelas que se aplicam ao cidadão comum.

Por isso, a cultura católica considera que é mais grave ofender um político do que um cidadão comum - e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que me condenou, expressa isso mesmo - ao passo que a cultura liberal do protestantismo, que enforma a jurisprudência do TEDH, considera que é exactamente ao contrário, um político é mais ofendível do que o cidadão comum. 

O traço distintivo de um verdadeiro liberal não é ele andar constantemente a agitar a bandeira da liberdade, como geralmente se crê. O traço mais distintivo de um verdadeiro liberal é a sua saudável aversão ao poder político. 

(Continuação acolá)

A Decisão do TEDH (372)

 (Continuação daqui)




372. Casos Notáveis


Numa publicação recente, o TEDH fez uma selecção de Casos notáveis (Noteworthy cases) que decidiu nos seus 46 anos de relação com Portugal (desde 1978).

Entre os casos notáveis está um caso, decidido este ano,  que deve deixar o Tribunal da Relação do Porto, e dois dos seus juízes, muito orgulhosos. Um deles foi, entretanto, promovido ao Supremo e o outro aguarda promoção: 

The case concerned Mr Almeida Arroja’s criminal conviction for aggravated defamation and causing offence to a legal entity. He had implied, during a broadcast on the television channel Porto Canal, that a legal opinion provided to a public hospital by a law firm, whose director happened to be a well-known politician and member of the European Parliament, had been motivated by political interests. 

Violation of article 10.

Fonte: cf. aqui


(Continua acolá)

A Decisão do TEDH (371)

 (Continuação daqui)

Pedro Vaz Patto, dirigente da Igreja Católica e juiz do Tribunal da Relação do Porto: condenou um conhecido liberal por dois crimes de ofensas (dois!), onde sete juízes do TEDH (sete!) viram apenas o exercício do direito fundador de uma sociedade livre - o direito à liberdade de expressão (cf. aqui)

371. O mundo às avessas

Houve um tempo em que os liberais perseguiam a Igreja.

Agora é a Igreja que persegue os liberais.

É o mundo às avessas.

(Continua acolá)

06 outubro 2024

A Decisão do TEDH (370)

 (Continuação daqui)

The Whore of Babylon


370. Os nomes

A padroeira de Portugal é Nossa Senhora da Conceição, do Brasil N.S. da Aparecida, do México N.S. de Guadalupe, da Polónia N. S. de Czestotchowa, da Argentina N. S. de Luján, de Espanha N.S. do Pilar, ...

Por que é que todos os países de cultura católica têm uma padroeira - que é invariavelmente a figura da Virgem Maria -, e não um padroeiro - que poderia ser um santo ou o próprio Cristo?

A razão é que a própria Igreja Católica é a figura teológica de Maria, e a cultura católica é uma cultura feminina que coloca a mulher num plano superior ao do homem.

Questão diferente é a de saber por que é que a cultura católica, que é uma cultura feminina, tendo no centro a figura de Maria, é mais avessa à liberdade de expressão do que a cultura protestante, que é uma cultura masculina, tendo no centro a figura de Cristo.

Uma resposta possível é a seguinte. Quem contemplar a história da Igreja Católica fica certamente impressionado com a sua longevidade e a sua capacidade de sobrevivência a todas as tragédias humanas e a todos os regimes políticos.

Num post anterior (cf. aqui) forneci a chave para esta capacidade de sobrevivência, que é a seguinte: A Igreja Católica casa-se com qualquer poder político, desde que seja poder, ao mesmo tempo que namora com o seu opositor. Quando o marido perde o poder, ela volta-lhe as costas e casa-se com o amante. (*)

Já se imaginou, se existir liberdade de expressão, os nomes que o povo vai chamar a esta mulher?

Serão de certeza muito piores do que os nomes que eu chamei ao Rangel - politiqueiro e jurista de vão- de-escada - e que levaram à Decisão do TEDH Almeida Arroja v. Portugal.

____________________

(*) É esta desconfiança em relação à lealdade dos católicos (se ao Rei se ao Papa) que levou a Inglaterra, primeiro, a proibir o catolicismo e, ainda hoje, a proibir que os católicos ocupem cargos de governação. Em Inglaterra, o chefe de Estado e o chefe da Igreja Anglicana são a mesma pessoa. Esta desconfiança pode também ter sido decisiva para traçar o destino que teve o único presidente americano eleito que era católico.

(Continua acolá)

05 outubro 2024

A Decisão do TEDH (369)

 (Continuação daqui)

Papa Pio IX


369. Um adversário


Alguns dias depois de ter tomado conhecimento da minha condenação no Tribunal da Relação do Porto, de que foi relator o juiz Pedro Vaz Patto,  ainda a convalescer de uma operação ao coração, escrevi assim neste blogue (cf. aqui):

"À medida que, ao longo dos últimos dias, procurei conhecer o pensamento do juiz-desembargador Pedro Vaz Patto, através de vários artigos disponíveis na internet, aquilo que de forma recorrente mais me ocorreu ao espírito foi um documento datado de 1864, da autoria do Papa Pio IX, e que vinha em anexo à sua encíclica Quanta Cura.

"Trata-se do célebre Syllabus dos Erros.

"Este documento contém 80 proposições ou teses que são consideradas falsas pela Igreja (cf. aqui).

"As mais interessantes são as quatro últimas (77-80) e, dentre estas, as duas últimas. A proposição 79ª é uma condenação da liberdade de expressão e pensamento, e a proposição 80ª é uma condenação radical do progresso, do liberalismo e da civilização moderna.

"Nas mãos dos inimigos da Igreja, este documento permanece até hoje o exemplo acabado do obscurantismo da Igreja Católica e dos países sujeitos à sua influência cultural, como é notoriamente o caso de Portugal".

Numa altura em que os valores liberais - como a liberdade de expressão e pensamento, a liberdade religiosa e a liberdade política - triunfavam no norte da Europa e na América do Norte, lançando as bases para os extraordinários ganhos civilizacionais de que hoje desfrutamos (económicos, científicos, institucionais, etc.),  a Igreja reagia com a mais vil condenação desses princípios, deixando os países sujeitos à sua influência secular, como era notoriamente o caso de Portugal, parados no passado.

Na célebre proposição 79ª do Syllabus dos Erros (um conjunto de 80 proposições que a Igreja condenava como Erros), a Igreja considerava ser um erro dizer-se que:

79º É falso que a liberdade civil de todos os cultos e o pleno poder concedido a todos de manifestarem clara e publicamente as suas opiniões e pensamentos produza corrupção dos costumes e dos espíritos dos povos, como contribua para a propagação da peste do Indiferentismo. (cf. aqui)

Numa só frase, a Igreja Católica produz a mais radical e explícita condenação da  liberdade de expressão e pensamento.

A última proposição é uma declaração da natureza retrógrada e anti-liberal da Igreja Católica feita pelo seu próprio chefe. Segundo o Papa, é um erro pensar-se que:

80º O Pontífice Romano pode e deve conciliar-se e transigir com o progresso, com o Liberalismo e com a Civilização moderna.

Poucos anos depois, produzir-se-ia aquela que ficou para a história como uma das mais virulentas manifestações da cultura católica portuguesa contra a liberdade de expressão - o encerramento compulsivo das Conferências do Casino ditado pelo Governo do Duque de Ávila (cf. aqui).  

Era este o estado da liberdade de expressão em Portugal na década de 1870. Por esta altura, a Primeira Emenda nos EUA já tinha feito 80 anos (cf. aqui).

Cento e cinquenta anos depois, eu sinto-me como o Antero de Quental, o Oliveira Martins (cujo livro principal dá o nome a este blogue) ou o Eça de Queirós, na realidade, um pouco pior, porque a eles apenas os impediram de falar, ao passo que eu fui considerado um criminoso por um Gang ligado à Igreja Católica (cf. aqui), e de que o juiz Vaz Patto, ele próprio dirigente da Igreja, é o protagonista principal. 

Desde que fui acusado - um momento que também deixei registado neste blogue (cf. aqui) -, que eu ainda não consegui digerir esta injustiça que é, na realidade, uma violência. Se não fosse o TEDH e a sua Decisão Almeida Arroja v. Portugal  - um recurso que os homens da geração de 70 não possuíam - eu já teria sido induzido a emigrar, ou passaria o resto dos meus dias em Portugal com medo de tudo o que pudesse dizer em público porque, depois de ter sido condenado por dois crimes de ofensas, ao terceiro, a pena não seria certamente de multa - seria de prisão. 

O acórdão do Tribunal da Relação do Porto foi isso mesmo - um acto de terrorismo institucional destinado a causar medo.

A Igreja Católica ganhou um adversário.


(Continua acolá)

A Decisão do TEDH (368)

 (Continuação daqui)


Supremo Tribunal da Ucrânia (Kiev)


368. O cerco aperta-se

A Decisão do TEDH Almeida Arroja v. Portugal faz jurisprudência no Supremo Tribunal da Ucrânia:

        Fonte: cf. aqui

O Putin que se cuide que os melhores magistrados e advogados do mundo começam a estar por perto (cf. aqui). O cerco aperta-se.


(Continua acolá)