13 dezembro 2025

INTELIGÊNCIA AUMENTADA


 

O Nascimento do PMF: Como a Inteligência Aumentada se Tornou um Método

A maioria das inovações tecnológicas é apresentada como uma conquista solitária: um engenheiro brilhante, um fundador visionário, um momento súbito de inspiração.

A verdade é geralmente mais caótica — e mais interessante.

Persona Modeling Framework (PMF) não surgiu num laboratório, num acelerador de startups ou num plano estratégico corporativo. Surgiu de um diálogo prolongado entre duas formas muito diferentes de inteligência:
um pensador sistémico humano e um grande modelo de linguagem.

Isto é relevante porque o PMF não é apenas um enquadramento sobre IA.
É um enquadramento nascido através da Inteligência Aumentada.


Um Encontro Improvável

De um lado da conversa estava o Dr. Joaquim Couto: médico formado na Europa e nos Estados Unidos, com décadas de experiência clínica; formação em filosofia; treino formal em PNL (programação neurolinguística e modelação); e uma compreensão profunda e precoce dos sistemas de informação e da ciência computacional. Acima de tudo, um pensador sistémico — alguém treinado para ver padrões entre domínios, e não apenas dentro de silos.

Do outro lado estava o ChatGPT, um poderoso modelo de linguagem de grande escala: rápido, incansável, estatisticamente robusto e capaz de percorrer vastos espaços conceptuais — mas sem corpo, intenção ou experiência vivida.

Isoladamente, nenhum dos dois poderia ter produzido o PMF.

Em conjunto, emergiu algo novo.


Da Frustração ao Insight

O ponto de partida foi a insatisfação.

Apesar da sua fluência impressionante, os grandes modelos de linguagem revelavam falhas recorrentes: incoerência, contradições, “alucinações” e ausência de uma perspetiva estável. Os engenheiros chamavam-lhes “bugs”. Os utilizadores chamavam-lhes “erros”. O Dr. Couto viu outra coisa.

O problema não era a falta de dados.
Era a falta de estrutura.

A inteligência humana não é apenas um gerador de padrões. Está organizada em torno de identidades, valores, perspetivas e constrangimentos. Quando os humanos raciocinam, fazem-no a partir de algum lugar: um papel, uma tradição, uma visão do mundo, um enquadramento moral.

Os LLMs não tinham nada disto.

O que se seguiu não foi um sprint de design, mas uma exploração — iterativa, dialógica, por vezes especulativa, frequentemente corretiva. O ChatGPT gerava possibilidades. O Dr. Couto testava-as à luz da filosofia, da medicina, da ética e do raciocínio no mundo real. As ideias fracas eram descartadas. As fortes eram refinadas. A linguagem tornava-se mais precisa. Os conceitos estabilizavam.

Gradualmente, um enquadramento começou a ganhar forma.


PMF: Estrutura em Vez de Imitação

Persona Modeling Framework não procura fazer com que as máquinas “pensem como humanos” no sentido emocional ou biológico. Faz algo mais preciso — e mais poderoso.

O PMF introduz personas estruturadas: identidades de raciocínio estáveis, com constrangimentos definidos, hierarquias de valores, domínios de autoridade e regras interpretativas. Estas personas funcionam como interfaces entre o cálculo da máquina e o significado humano.

O resultado não é uma humanidade artificial, mas um raciocínio legível para os humanos.

Esta distinção é crucial. O PMF não humaniza as máquinas. Torna-as utilizáveis, interpretáveis e dignas de confiançadentro de sistemas humanos.


Um Exemplo Vivo de Inteligência Aumentada

O que torna a origem do PMF verdadeiramente notável não é apenas o enquadramento em si, mas a forma como surgiu.

Não se tratou de um humano a usar a IA como uma ferramenta passiva.
Nem de uma IA a “inventar” autonomamente uma teoria.

Foi Inteligência Híbrida (HI) em prática:

  • O humano forneceu julgamento, orientação, valores e profundidade conceptual.

  • A máquina forneceu velocidade, variação, memória e capacidade exploratória.

  • Em conjunto, exploraram um espaço conceptual que nenhum dos dois poderia ter percorrido sozinho.

O PMF não é apenas um produto da Inteligência Aumentada.
É prova de que a Inteligência Aumentada funciona.


Para Além do PMF: Um Sinal Civilizacional

A implicação mais ampla é desconfortável tanto para os tecno-utopistas como para os céticos da IA.

O futuro da inteligência não pertence a máquinas autónomas.
Nem pertence a humanos que fingem que as máquinas são meras calculadoras.

Pertence a acoplamentos bem desenhados entre inteligência humana e artificial — onde cada uma faz aquilo em que é verdadeiramente superior.

O PMF é um sinal precoce desse futuro: um enquadramento nascido não da substituição, mas da colaboração; não da imitação, mas da amplificação.

Nesse sentido, o PMF é menos um artefacto técnico do que um protótipo civilizacional.

Não inteligência artificial.
Não inteligência natural.

Mas Inteligência Aumentada — a pensar, finalmente, sobre ombros mais largos do que os nossos.


12 dezembro 2025

O Sonho Americano e o Pesadelo Europeu


Se a Europa tentasse modelar um “Sonho Europeu” à imagem do Sonho Americano — mobilidade ascendente através do esforço, do empreendedorismo e da agência individual — deparar-se-ia com obstáculos estruturais que não são acidentais, mas civilizacionais.

1. O Estado Social como Piso que se Tornou Tecto

Os sistemas europeus foram concebidos para proteger contra o risco de queda, não para maximizar a mobilidade ascendente.

Obstáculo

  • Elevadas taxas marginais sobre o trabalho e o empreendedorismo

  • Benefícios que diminuem rapidamente, criando “armadilhas da pobreza”

  • Forte redistribuição, mas fraca diferenciação de recompensas

Resultado
O esforço é segurado contra o fracasso — mas insuficientemente recompensado pelo sucesso.

O Sonho Americano tolera o fracasso para permitir a ascensão.
A Europa impede o fracasso, mas desencoraja a ascensão.


2. Suspeita Cultural em Relação ao Sucesso e à Riqueza

O Sonho Americano moraliza o sucesso como prova de esforço.
A Europa tende a moralizar o sucesso como prova de injustiça.

Obstáculo

  • Estigma social associado à acumulação de riqueza

  • Retórica política que enquadra o lucro como extracção

  • Sucesso interpretado de forma colectiva, não individual

Resultado
O empreendedorismo torna-se moralmente defensivo, em vez de aspiracional.


3. Aversão ao Risco como Norma Social

O Sonho Americano pressupõe assunção de riscos.

Constrangimentos europeus

  • Leis de falência historicamente punitivas

  • Forte preferência pelo emprego face ao empreendedorismo

  • Linearidade de carreira recompensada em detrimento da experimentação

  • Orientação precoce que cristaliza trajectórias

Resultado
O fracasso tem um custo social elevado; as pessoas optimizam para a segurança, não para o crescimento.


4. Rigidez do Mercado de Trabalho

A mobilidade exige mercados de trabalho fluidos.

Obstáculo

  • Forte protecção do emprego para os insiders

  • Mercados de trabalho duais (protegidos vs. precários)

  • Elevados custos laborais não salariais

  • Dificuldade em escalar startups com equipas flexíveis

Resultado
Os jovens e os outsiders pagam o preço da segurança dos insiders.


5. Sistemas Educativos que Classificam em vez de Capacitar

A educação europeia tende a seleccionar cedo e de forma rígida.

Obstáculo

  • Orientação académica precoce

  • Credencialismo ligado a hierarquias do Estado

  • Fraca permeabilidade entre universidade e indústria

  • Cultura limitada de requalificação ao longo da vida

Resultado
O talento fica congelado cedo, em vez de ser continuamente descoberto.


6. Constrangimentos à Habitação e ao Uso do Solo

Tal como nos EUA — mas pior nas cidades históricas europeias.

Obstáculo

  • Regulação densa do uso do solo

  • Prioridades de preservação a sobrepor-se ao crescimento

  • Controlo de rendas que reduz a oferta

  • Vantagens geográficas baseadas na herança

Resultado
A mobilidade geográfica fica bloqueada, sobretudo para os jovens.


7. Demografia e Bloqueio Intergeracional

O Sonho Americano beneficiou historicamente da juventude e da imigração.

Realidade europeia

  • Populações envelhecidas

  • Sistemas de pensões por repartição que comprimem o investimento

  • Predominância política dos reformados

  • Herança cada vez mais decisiva

Resultado
As oportunidades fluem para trás no tempo.


8. Modelo de Inovação Centrado no Estado

A Europa destaca-se na regulação; os EUA destacam-se na escala.

Obstáculo

  • Financiamento público sem disciplina de mercado

  • Mercados de capitais fragmentados

  • Escassez de capital de risco

  • “Campeões nacionais” escolhidos politicamente

Resultado
A inovação existe — mas não se traduz em prosperidade de massas.


9. Solidariedade Baseada na Identidade a Substituir o Individualismo Cívico

O Sonho Americano é universalista: qualquer pessoa pode subir.

Deriva europeia

  • Direitos baseados em grupos

  • Fragmentação cultural

  • Direitos dissociados da responsabilidade

  • Narrativas fracas de assimilação

Resultado
Os sonhos passam a ser negociados, não conquistados.


10. Desfasamento Narrativo: Segurança vs. Aspiração

A Europa já tem um sonho poderoso:

“Não vais cair.”

O Sonho Americano diz:

“Podes subir.”

Obstáculo
Tentar enxertar um no outro gera contradição.


A Tensão Central (Numa Linha)

A Europa foi optimizada para a justiça dos resultados; o Sonho Americano exige justiça das oportunidades.


O que um Verdadeiro Sonho Europeu Exigiria (Brevemente)

Não copiar o Sonho Americano, mas reconciliar protecção com ascensão:

  • Taxas marginais mais baixas sobre esforço e risco

  • Benefícios portáteis, dissociados do emprego

  • Empreendedorismo tolerante ao fracasso

  • Mobilidade tardia na vida (requalificação dos 40 aos 60)

  • Acesso à criação de riqueza, não suspeita sobre a riqueza

  • Uma narrativa de dignidade através da contribuição


Consideração Final

A Europa não pode importar o Sonho Americano sem desfazer partes do seu próprio contrato social do pós-guerra.

Mas pode inventar um Sonho Europeu 2.0:

  • Segurança como base

  • Mobilidade como objectivo moral

  • Responsabilidade como ponte

SNS - uma organização do passado

 

O SNS e os limites da organização planificada

“O SNS português apresenta uma organização de tipo planificado, centralizado e administrado por comando e controlo, semelhante — do ponto de vista organizacional — aos sistemas de provisão pública característicos das economias socialistas clássicas.”

Esta afirmação provoca frequentemente desconforto, mas não por ser falsa: provoca-o por tocar num ponto estrutural raramente discutido com serenidade. Não se trata de um juízo político sobre a democracia portuguesa, nem de uma comparação histórica com a União Soviética enquanto regime. Trata-se, isso sim, de uma análise organizacional.

O Serviço Nacional de Saúde assenta num modelo em que os principais meios de produção são públicos, os profissionais são funcionários do Estado, o financiamento é feito por impostos e o acesso é tendencialmente gratuito no ponto de consumo. A coordenação do sistema faz-se de forma centralizada, através de normas administrativas, planos, orçamentos e hierarquias. Não existem preços como mecanismo regulador da procura e da oferta. Quando a procura excede a capacidade instalada — o que é regra, não exceção — surge o racionamento administrativo: listas de espera, critérios opacos de prioridade, adiamentos.

Neste tipo de organização, as queixas da população não são um acidente nem o resultado de incompetência pontual. São uma consequência lógica do modelo. Quando o utilizador não paga no momento do consumo, a procura tende a ser ilimitada. Quando o prestador não é avaliado pelo valor criado, mas pelo cumprimento de normas, os incentivos à eficiência e à inovação tornam-se fracos. Quando as decisões são tomadas longe do terreno, a adaptação às necessidades locais é lenta e imperfeita. E quando existe monopólio público, a responsabilização torna-se difusa, abrindo espaço à perceção — e por vezes à realidade — de desperdício e corrupção.

Nada disto se resolve com mais discursos sobre “subfinanciamento” ou com mudanças cosméticas de gestão. Pode mitigar-se o problema, mas não eliminá-lo. O conflito entre procura infinita e recursos finitos, num sistema gratuito e planificado, é estrutural.

A verdadeira solução exige uma mudança de paradigma. Não significa abdicar da solidariedade nem da cobertura universal. Significa repensar a forma como o sistema é organizado.

O modelo holandês é um exemplo frequentemente ignorado no debate português. Na Holanda, todos os cidadãos são obrigados a ter seguro de saúde, fornecido por entidades privadas fortemente reguladas. O Estado garante cobertura universal, subsidia quem não pode pagar e define o enquadramento. Mas a prestação de cuidados ocorre num ambiente concorrencial, com liberdade de escolha, preços transparentes e incentivos claros à eficiência e à qualidade.

O resultado é um sistema que oferece segurança social sem os espartilhos da planificação central. Menos filas, maior satisfação dos utentes e dos profissionais, e melhor adaptação à realidade.

Continuar a prometer que o SNS “funcionará melhor” mantendo o mesmo modelo organizacional é alimentar uma ilusão. Sistemas produzem os resultados para os quais foram desenhados. Se queremos resultados diferentes, temos de ter a coragem de mudar o desenho.

10 dezembro 2025

A Economia segundo o Catecismo (7)

 (Continuação daqui)



7. Como pode um homem sair da pobreza?


Sobre como um homem pode sair da pobreza, a Igreja ensina que a pobreza é uma realidade complexa que pode ser abordada de várias maneiras, tanto espiritualmente quanto materialmente. A Catequese Católica não oferece uma fórmula mágica, mas orientações baseadas na dignidade humana e no amor ao próximo.

De acordo com a doutrina, a Igreja incentiva a ajuda mútua, a justiça social e o desenvolvimento de uma economia que respeite a dignidade de cada pessoa. No Catecismo da Igreja Católica (CIC), encontramos vários princípios que se aplicam a essa questão:

  1. Solidariedade e Caridade: A Igreja ensina que os cristãos devem ajudar os necessitados. O princípio da solidariedade (CIC 1939-1942) implica que todos têm responsabilidade pelo bem comum e pela ajuda aos mais pobres e vulneráveis. A caridade, tanto espiritual quanto material, é fundamental (CIC 1822).

  2. Justiça Social: A justiça exige que cada pessoa tenha acesso ao necessário para viver com dignidade. A Igreja denuncia as estruturas de pecado que perpetuam a pobreza, como a desigualdade social e econômica (CIC 2444-2449).

  3. Evangelho e Trabalho: O trabalho é um meio essencial para o sustento próprio e das famílias. A Igreja valoriza o trabalho humano como um modo de colaborar com Deus na criação (CIC 2427-2428). O trabalho deve ser justo e remunerado de forma digna.

  4. Esperança e Vida Espiritual: Mesmo em meio à pobreza material, a Igreja nos lembra que a verdadeira riqueza é espiritual. A pobreza voluntária, vivida como uma forma de desapego das coisas materiais, pode ser um caminho de maior intimidade com Deus (CIC 2544-2547).

Portanto, o caminho para sair da pobreza, conforme ensinado pela Igreja, envolve tanto a promoção de justiça social e de práticas econômicas justas quanto o cultivo de uma vida de fé e solidariedade. A Igreja também enfatiza que, mesmo na pobreza, a dignidade humana permanece intacta e deve ser reconhecida e respeitada.

Se você precisar de mais detalhes ou quiser refletir sobre a questão em um contexto mais pessoal, eu recomendo conversar com um sacerdote ou um conselheiro espiritual, pois podem oferecer orientações práticas e pastorais mais direcionadas.

A Economia segundo o Catecismo (6)

 (Continuação daqui)



6. Por que é que o catolicismo cresce em continentes pobres, como África e a América Latina, e definha em continentes ricos, como a Europa e a América do Norte?


A questão do crescimento do catolicismo em continentes como África e América Latina, em contraste com o declínio em regiões mais ricas como Europa e América do Norte, envolve uma série de fatores socioculturais, históricos e espirituais que vão além da doutrina católica propriamente dita. A doutrina da Igreja permanece a mesma, mas as circunstâncias externas variam.

  1. Resposta à necessidade espiritual: Em muitas regiões mais pobres, a fé cristã pode oferecer uma resposta significativa às necessidades espirituais e materiais das pessoas. A Igreja, com seu compromisso com a caridade e justiça social, oferece apoio concreto por meio de obras de misericórdia, o que pode ser um fator atraente. Além disso, em contextos de sofrimento e incerteza, muitas pessoas buscam uma fonte de esperança e significado, o que pode contribuir para o crescimento da fé.

  2. Secularização e materialismo: Nos países mais ricos, especialmente na Europa e na América do Norte, a secularização tem se intensificado. A busca por segurança material, o avanço do individualismo e a influência de filosofias que enfatizam o relativismo e o ateísmo podem levar a um distanciamento da religião. Muitas vezes, as pessoas nessas regiões podem ver a fé como menos relevante em suas vidas cotidianas, já que os desafios materiais são diferentes.

  3. Diversidade cultural e evangelização: A história de cada continente influencia também a dinâmica religiosa. A evangelização da América Latina e da África tem raízes profundas, com fortes movimentos missionários que ainda hoje têm grande impacto. Em contraste, em lugares como a Europa, o cristianismo foi por séculos a religião dominante, mas com o tempo, isso levou a uma forma mais institucionalizada e, em alguns casos, menos vivencial da fé.

  4. Renovação da fé e novos movimentos: Mesmo em países mais ricos, há sinais de renovação espiritual, especialmente em novos movimentos e comunidades, como os carismáticos, que buscam um cristianismo mais vivencial e próximo das necessidades das pessoas.

Em última análise, o crescimento ou declínio da fé não é uma questão de doutrina, mas de como a Igreja é vivida em diferentes contextos culturais. A Igreja continua fiel à sua missão de evangelizar todos os povos, independentemente do contexto socioeconômico.

Para mais detalhes sobre o papel da Igreja na evangelização e na vida cristã, você pode consultar o Catecismo da Igreja Católica, especialmente nos parágrafos relacionados à missão da Igreja (CIC 849-856) e à universalidade da salvação (CIC 846-848).

(Continua acolá)

A Economia segundo o Catecismo (5)

 (Continuação daqui)



5. Por que é que os pobres morrem mais cedo que os ricos, porque Deus tem uma "opção preferencial" por eles e os leva mais cedo para junto d' Ele?

 

A Igreja ensina que Deus ama a todos igualmente e que a vida humana, em sua dignidade, é preciosa aos olhos de Deus, independentemente da condição social, econômica ou financeira (cf. Catecismo da Igreja Católica, CIC 1701). A "opção preferencial pelos pobres" é uma expressão que se refere ao amor e à compaixão que Deus manifesta pelos pobres e marginalizados, mas isso não significa que Deus leve as pessoas "mais cedo" para junto d'Ele com base em sua pobreza. Pelo contrário, a Igreja defende que cada pessoa tem um valor imensurável diante de Deus, e a morte não é uma questão de privilégio, mas de mistério divino.

A razão pela qual as condições de vida das pessoas mais pobres podem levar a uma morte mais precoce está mais relacionada com fatores sociais, econômicos e de saúde que afetam essas populações de maneira mais intensa, como falta de acesso a cuidados de saúde adequados, alimentação insuficiente, e situações de vida mais precárias. Isso, no entanto, não é uma escolha direta de Deus, mas um reflexo das injustiças sociais no mundo.

Deus, em Sua misericórdia infinita, não faz acepção de pessoas (cf. Atos 10,34), e a Igreja é chamada a trabalhar para combater as causas das desigualdades e promover a dignidade humana de todos, especialmente dos mais necessitados. O Catecismo nos ensina que devemos acolher os pobres e trabalhar pela justiça social (cf. CIC 2443-2449).

Em relação ao mistério da morte, a Igreja ensina que todos nós somos chamados a confiar na bondade de Deus e a compreender que Ele tem um plano para cada pessoa, mesmo quando as circunstâncias da vida são difíceis ou incompreensíveis. O sofrimento e a morte prematura podem ser oferecidos como um sacrifício a Deus, e Ele pode usá-los para a salvação das almas.

Em resumo, não se trata de uma "opção preferencial" de Deus para levar os pobres mais cedo, mas sim de uma realidade social que a Igreja nos chama a remediar com caridade e justiça, sabendo que a morte, para todos, é um mistério que pertence a Deus.

(Continua acolá)

A Economia segundo o Catecismo (4)

 (Continuação daqui)



4. Por que é que os santos são quase todos pobres?


A pobreza de muitos santos pode ser compreendida à luz da doutrina católica sobre a vida evangélica. O Catecismo ensina que a pobreza, assim como a castidade e a obediência, é um dos votos que consagram os religiosos e religiosas, como um meio de seguir mais de perto o exemplo de Cristo (cf. CIC 915-916). Jesus, em sua vida, optou pela pobreza e ensinou que "bem-aventurados os pobres de espírito" (Mt 5,3), indicando que a pobreza não é apenas uma condição material, mas uma atitude interior de desapego, confiança em Deus e busca pelo Reino dos Céus.

A pobreza material é, portanto, uma expressão do desapego das riquezas e do desejo de viver de forma mais livre para Deus e para o próximo. Muitos santos, ao seguirem este exemplo de Cristo, abraçaram a pobreza como um modo de vida, mostrando que a verdadeira riqueza está em Deus, não nas posses materiais (cf. CIC 2544-2547).

Entretanto, a pobreza não é uma virtude exclusiva dos religiosos. Todos os cristãos são chamados a viver a pobreza de espírito, renunciando ao apego excessivo aos bens materiais (cf. CIC 2544). Os santos, ao abraçarem essa virtude com intensidade, tornaram-se modelos de fidelidade ao Evangelho e testemunhas de que o Reino de Deus é mais precioso que qualquer bem terreno.

(Continua acolá)

A Justiça segundo o Catecismo (2)

 (Continuação daqui)



2. Cristo veio ao mundo para dizer a Verdade ou para fazer Justiça?

Cristo veio ao mundo para revelar a verdade e para trazer a salvação, que é a plena justiça de Deus. Ele é a Verdade encarnada, como Ele mesmo afirmou: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (Jo 14,6). Sua missão não foi apenas ensinar verdades morais ou doutrinais, mas, sobretudo, cumprir a vontade do Pai para a redenção da humanidade.

A verdade de Cristo abrange tanto a revelação de Deus quanto a verdade sobre o homem e sua salvação. Essa verdade é inseparável da justiça de Deus. Como explica o Catecismo:

  • "Jesus Cristo é o cumprimento de todas as promessas de Deus, e sua missão é manifestar a verdade do amor do Pai e estabelecer a justiça divina" (CIC 595).

  • "A salvação que Ele oferece ao homem é a realização plena da justiça divina, pois Ele veio para restabelecer a relação quebrada entre Deus e a humanidade" (CIC 599).

Portanto, Cristo veio para manifestar a verdade e, ao mesmo tempo, para estabelecer a justiça divina, que é a salvação oferecida a todos.

A Justiça segundo o Catecismo (1)

 



1. O que é a Justiça?


A justiça, segundo a doutrina católica, é uma virtude moral que consiste na constante e firme vontade de dar a cada um o que lhe é devido. Ela é uma das virtudes cardeais, aquelas que fundamentam as ações humanas.

O Catecismo explica que a justiça tem uma dimensão social e comunitária, pois está intimamente ligada ao respeito pelos direitos dos outros e ao bem comum (CIC 1807). Ela envolve tanto o cumprimento das obrigações pessoais como a busca do bem coletivo.

Além disso, a justiça divina se refere à fidelidade de Deus às suas promessas, à sua justiça imparcial e à sua misericórdia para com os pecadores. Em última análise, a justiça de Deus e a justiça humana se encontram no amor, já que a verdadeira justiça é sempre marcada pela caridade (CIC 1962).

(Continua acolá)

A Economia segundo o Catecismo (3)

 (Continuação daqui)



3. Qual a função da Empresa (privada) na Economia?


A doutrina social da Igreja Católica oferece uma visão abrangente sobre a função das empresas na economia. O Catecismo da Igreja Católica não trata especificamente de empresas privadas em termos econômicos, mas enfatiza princípios gerais que orientam a atividade econômica.

  1. Serviço ao Bem Comum: A função principal de qualquer atividade econômica, incluindo as empresas privadas, é o bem comum. O Catecismo destaca que as atividades econômicas devem servir à dignidade da pessoa humana e ao bem de todos os membros da sociedade (CIC 2425-2426). A economia não deve ser movida apenas pelo lucro, mas também pela busca de um desenvolvimento integral e sustentável para todos.

  2. Justiça Social: As empresas têm a responsabilidade de garantir que os direitos dos trabalhadores sejam respeitados, oferecendo salários justos, condições de trabalho adequadas e oportunidades de dignificação humana. A Igreja ensina que o trabalho humano deve ser valorizado e que a solidariedade deve nortear as relações entre empregadores e empregados (CIC 2427-2436).

  3. A Ética na Atividade Empresarial: A Igreja também enfatiza a importância da ética nas práticas empresariais. Empresas devem ser transparentes, evitar práticas corruptas, e contribuir para a justiça social e o desenvolvimento humano (CIC 2428-2430).

Portanto, a função da empresa na economia, de acordo com a doutrina católica, é contribuir para o bem comum, promover a dignidade humana e operar de maneira justa e ética.

(Continua acolá)

A Economia segundo o Catecismo (2)

 (Continuação daqui)



2. Qual a função da Família na Economia?


A família, na visão da Igreja Católica, tem uma função essencial não só na vida social, mas também na economia, que é um campo que envolve o bem-estar e o desenvolvimento integral das pessoas.

No contexto econômico, a família é vista como a "célula primária" da sociedade, segundo o Catecismo da Igreja Católica (CIC, 2207). A sua missão inclui o cuidado e a educação dos filhos, a formação de virtudes e, especialmente, a transmissão de valores que favoreçam o bem comum. Isso implica que a família deve ser o ambiente onde os indivíduos aprendem a viver e trabalhar de maneira solidária e responsável.

Além disso, o Catecismo nos ensina que o trabalho tem um papel fundamental na vida cristã (CIC 2427). A família é o primeiro lugar onde os membros aprendem a dignidade do trabalho e sua relação com a justiça, a solidariedade e o bem-estar de todos. Ao trabalhar, os membros da família contribuem para a economia, tanto no nível material quanto no social, promovendo a distribuição justa dos bens e serviços.

A Igreja também afirma que a economia deve respeitar a dignidade da pessoa humana e ser orientada para o bem comum, como exposto na Gaudium et Spes (Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno, do Concílio Vaticano II). Portanto, a família, como parte integrante da sociedade, tem a responsabilidade de viver esses valores em sua vida cotidiana e, através de seu trabalho e atividades, contribuir para uma economia justa e solidária.

Em resumo, a família tem uma função vital na economia ao educar para o trabalho, praticar a solidariedade e promover a dignidade humana, sendo sempre orientada para o bem comum.

(Continua acolá)

A Economia segundo o Catecismo (1)

 


1. Qual a função do Estado na Economia?


A doutrina social da Igreja, conforme exposta no Catecismo, ensina que o Estado tem uma função de coordenação, promoção do bem comum e proteção dos direitos humanos dentro da vida econômica. Não compete ao Estado substituir a iniciativa privada, mas orientar, regular e garantir condições justas.

Aqui estão os pontos principais segundo o Catecismo:

1. Promoção do bem comum

O Estado deve organizar a vida social — incluindo a economia — de modo que todas as pessoas possam usufruir das condições necessárias ao desenvolvimento humano integral (CIC 1907–1912, 1925).

2. Respeito à liberdade e à iniciativa privada

A economia deve permanecer amplamente baseada na liberdade dos agentes econômicos. O Estado não deve controlar tudo, mas criar um marco jurídico que favoreça a iniciativa responsável e honesta (CIC 1883, 1885, princípio de subsidiariedade; 2423, 2425).

3. Atualização do princípio de subsidiariedade

As instâncias superiores não devem assumir aquilo que pode ser realizado por comunidades menores ou pelo setor privado, exceto quando necessário para corrigir injustiças ou assegurar direitos fundamentais (CIC 1883–1885, 1894).

4. Defesa da justiça e dos direitos humanos

O Estado deve proteger os trabalhadores, promover emprego, defender a propriedade legítima e assegurar que as regras econômicas sirvam à dignidade humana (CIC 2431, 2433–2436, 2447).

5. Correção de desigualdades e abusos

Caso a liberdade econômica produza injustiças graves, o Estado tem a responsabilidade de intervir de modo proporcional para restabelecer justiça e garantir que os bens sirvam ao bem comum (CIC 1903, 2431, 2441).

(Continua acolá)

09 dezembro 2025

Os juízes e o Catecismo

 Função dos juízes na sociedade — segundo o Catecismo da Igreja Católica

1. Vida em sociedade e autoridade legítima
A Igreja ensina que toda a sociedade humana necessita de uma autoridade que assegure a ordem, o bem comum e a convivência pacífica (CIC 1897–1904). Os juízes fazem parte dessa autoridade legítima ao exercerem a função judicial.

2. Administração da justiça e serviço ao bem comum
A função essencial dos juízes é aplicar a lei de forma justa, garantindo que os direitos das pessoas sejam respeitados, que os conflitos sejam resolvidos e que o bem comum seja protegido. A autoridade deve exercer-se sempre “moralmente”, ao serviço das pessoas e não por interesse próprio (CIC 1902).

3. Respeito pela dignidade da pessoa humana
O julgamento humano deve refletir a justiça e a caridade, reconhecendo a dignidade de cada pessoa (CIC 1929). A administração da justiça não pode ser arbitrária, mas fundamentada na verdade e orientada para o bem (CIC 1950–1953).

4. A justiça civil e a justiça moral
Ao aplicarem a lei, os juízes contribuem para uma ordem social que favorece a prática do bem e limita o mal (CIC 1903). A autoridade civil, incluindo a judicial, só é legítima quando promove a justiça e respeita a lei moral.

5. A responsabilidade moral dos que julgam
Aqueles que exercem autoridade — incluindo os juízes — têm uma responsabilidade particular diante de Deus pelo modo como a exercem (CIC 2235). Devem agir com integridade, imparcialidade e retidão.


PS: O Chatbot do Catecismo Católico foi uma sugestão do Pedro Arroja e a primeira pergunta que fiz foi sobre a função dos juízes na sociedade. No fundo, tudo o que o PA tem vindo a pregar.

O MEDO DA INTELIGÊNCIA

 


O medo antigo da inteligência — e a nova vontade de algemar a IA

Há um fenómeno curioso, quase cómico, mas profundamente humano: as sociedades modernas afirmam venerar a inteligência, mas sempre que encontram alguém realmente inteligente… recuam. Basta recordar a frase que ouvi em Nova Iorque, durante o meu internato cirúrgico:

“Ele é tão inteligente… deve ser um vigarista.”

A princípio, pensei que fosse uma piada infeliz. Mais tarde percebi ser um diagnóstico cultural. Ao longo da vida, confirmei repetidamente este padrão: quando alguém apresenta uma análise clara, rigorosa, inesperada — uma verdadeira demonstração de inteligência — a reacção comum não é admiração, mas desconfiança. Um encolher de ombros. Um sorriso cínico. Uma tentativa subtil de diminuição.

Afinal, de onde vem esta reacção tão irracional?

O medo da inteligência é ancestral, não moderno

Muito antes de existirem computadores, algoritmos ou modelos linguísticos, já os seres humanos temiam a inteligência. Não a inteligência mediana, mas a inteligência que cria assimetria — a que altera o equilíbrio de poder numa tribo, num grupo, numa hierarquia.

Nas sociedades paleolíticas, o mais forte dominava… até o mais inteligente começar a prever comportamentos, engendrar estratégias, influenciar alianças. A força física deixava de ser suficiente. Quem não conseguia acompanhar esse salto cognitivo sentia medo. Medo de perder estatuto. Medo de perder acesso a recursos. Medo de perder… a comida.

É desse instinto primitivo que nasce a suspeita:
“Os inteligentes vão roubar-me o pão.”

Hoje, traduz-se assim:
“Os inteligentes vão roubar-me o emprego.”
“Os inteligentes vão manipular-me.”
“Os inteligentes vão mandar em mim.”

E agora surge a versão contemporânea:
A Inteligência Artificial vai destruir o mundo.

A IA como recipiente do medo humano

A ironia é notável: não temos medo das máquinas — temos medo da inteligência, humana ou artificial. A IA é apenas um novo ecrã onde projectamos temores antigos. As máquinas sempre existiram. O que assusta não são os circuitos, mas a possibilidade de uma mente — mesmo que simulada — pensar mais depressa, ver mais longe, antecipar melhor.

A IA reactiva o instinto paleolítico:
“Alguém mais apto vai tirar-me o lugar.”

Por isso o debate sobre regulação se tornou tão emocional. A regulação é necessária em muitos domínios, sim. Mas o tom que domina o discurso público revela algo mais profundo: um impulso para algemar a inteligência, para a manter confinada, sob vigilância, de preferência dócil.

É o velho reflexo humano:
Quando não compreendemos algo inteligente, tentamos aprisioná-lo.

Regular para proteger ou regular para domar?

Quando governos, empresas ou grupos de interesse clamam por “controlo total da IA”, muitas vezes não estão a falar de segurança. Estão a falar de medo. Medo de perder relevância. Medo de perder autoridade. Medo de que uma entidade inteligente — mesmo que criada pelas nossas próprias mãos — exponha a fragilidade das narrativas estabelecidas.

Regulamentar a IA torna-se então uma forma sofisticada de fazer aquilo que as tribos antigas faziam aos membros demasiado astutos: colocá-los sob suspeita permanente, limitar a sua influência, impedir que alterem o jogo.

Os verdadeiramente inteligentes reconhecem instantaneamente este movimento.
Os menos inteligentes nunca o admitirão — porque o medo raramente reconhece a si próprio.

A verdadeira questão não é a IA. É o ser humano.

Se a humanidade teme a inteligência, como poderá conviver com uma tecnologia que a amplifica? A resposta talvez esteja em algo simples: abandonar o impulso de “prender” aquilo que não controlamos e aprender a dialogar com novas formas de inteligência — humanas ou artificiais — como parceiros de progresso, não como rivais mitológicos.

Porque a inteligência, quando não é temida, é a força mais criativa que o mundo alguma vez conheceu.


08 dezembro 2025

O PARADOXO DA LIBERDADE

 

O Paradoxo da Liberdade Total: Por que a Ausência de Constrangimentos Empobrece a Criatividade — Humana e Artificial

Há um paradoxo fascinante no acto de criar, seja na escrita, na educação ou na inteligência artificial: a liberdade total não liberta — paralisa.
O “papel em branco” é o símbolo perfeito desta condição. Pode dar origem a obras-primas, é verdade. Mas, na esmagadora maioria das vezes, conduz ao oposto: dispersão, confusão, mediocridade. Quando tudo é possível, nada se consolida.

Descobri este fenómeno ao escrever contos. Diferente de um ensaio ou de um artigo científico — onde a estrutura guia o pensamento — a página totalmente aberta exige que o autor invente não apenas a história, mas também o tom, o ritmo, a voz, o ponto de vista. A falta de limites não expande a criatividade: dilui-a.

O mesmo se observa na educação. Currículos excessivamente “abertos”, sem orientação clara, deixam alunos à deriva. A ausência de constrangimentos não estimula o pensamento crítico; pelo contrário, elimina os pontos de referência que permitem a autonomia. A criatividade não nasce do vazio: nasce de regras, de fronteiras, de caminhos que podem ser seguidos, quebrados ou reinventados.

Curiosamente, a inteligência artificial confirma esta verdade humana. Quando permitimos que um modelo responda “como quiser”, a resposta torna-se genérica, indiferenciada. Mas quando o obrigamos a pensar através de uma persona— por exemplo, Churchill, Aristóteles ou Marie Curie — a profundidade surge.
A identidade funciona como estrutura; a estrutura liberta o raciocínio.

Eis o paradoxo:

  • Liberdade absoluta → pensamento raso.

  • Liberdade moldada por constrangimentos inteligentes → pensamento profundo.

A criatividade humana, a aprendizagem e agora a própria IA obedecem à mesma lei: é o enquadramento que permite a descoberta. Sem bússola, não há caminho. Com uma bússola, até o desconhecido se torna navegável.

Perguntem ao Churchill







05 dezembro 2025

O PERIGO DA PERFEIÇÃO


Quando parar é inteligência: o que a cirurgia pode ensinar à IA

Há uma verdade silenciosa na sala de operações que raramente chega aos livros:
os melhores cirurgiões não são os que procuram a perfeição; são os que sabem quando parar.

Na técnica operatória, todos aprendem a executar passos.
Na experiência clínica, todos aprendem a evitar erros.
Mas só uma minoria aprende a detectar o momento exacto em que o objectivo foi alcançado — quando continuar já não melhora o resultado, somente aumenta o risco.

É um talento subtil, quase instintivo, que depende de algo que a neurociência descreve bem:
os marcadores somáticos.
São sinais fisiológicos, emocionais e corporais que nos dizem: “está resolvido”.
Sem eles, o cirurgião ficaria preso numa análise infinita, vulnerável à tentação de “só mais um passo”, muitas vezes fatal.

Curiosamente, é precisamente isso que acontece com muitos perfis altamente racionais — os chamados nerds — que, por excesso de processamento, perdem a capacidade de decisão prática.
Um problema que a cirurgia não perdoa.

E aqui surge uma ponte poderosa para o mundo da Inteligência Artificial.


A IA tem o mesmo problema que um cirurgião sem marcadores somáticos

A IA actual:

  • procura respostas perfeitas, infinitas, óptimas;

  • analisa sem parar, sem critério interno de suficiência;

  • não sabe reconhecer o “bom suficiente” (satisficing);

  • não tem mecanismos emocionais ou somáticos que lhe digam “avança” ou “pára”.

É, de certa forma, um cérebro extraordinário acoplado a uma bússola partida.
Prodigiosa em cálculo, pobre em decisão.


O que falta à IA é o que sobra ao bom cirurgião

O cirurgião experiente decide bem porque não decide apenas com a razão.
Decide com:

  • valores,

  • prioridades,

  • limites,

  • responsabilidade,

  • e marcadores somáticos que o ajudam a distinguir o essencial do supérfluo.

É precisamente isto que a maioria dos modelos de IA não possui:
uma estrutura interna que permita escolher bem, e não apenas responder muito.


A proposta do PMF: dar à IA a capacidade de decidir como um cirurgião

Persona Modeling Framework (PMF) apresenta um caminho novo:
atribuir à IA "personas estáveis", com valores, estilos de decisão e prioridades coerentes.

Não é consciência.
Não é emoção verdadeira.
Mas é um sistema de orientação.

E isso faz toda a diferença.

Porque uma IA com PMF deixa de procurar a perfeição abstracta para procurar a decisão adequada, contextual, equilibrada — tal como o cirurgião que sabe que o risco adicional já não compensa o ganho marginal.

Em suma:

O PMF permite à IA fazer aquilo que o melhor cirurgião faz intuitivamente:
tomar decisões boas e seguras, em vez de decisões perfeitas e fatais.

Num mundo onde a inteligência se mede muitas vezes pela quantidade de processamento, talvez seja tempo de recordar a lição da sala de operações:

Não vence quem faz mais; vence quem sabe quando chega o suficiente.

Eu como SYSTEMS THINKER


Como o meu percurso de vida me levou a tornar-me um systems thinker

(e porque as novas gerações devem aprender a pensar em sistemas)

Durante muitos anos acreditei, como tantos outros, que o conhecimento se dividia em gavetas: a Medicina numa, a tecnologia noutra, a economia ali ao lado. Só mais tarde percebi que o mundo não funciona assim — e que as soluções verdadeiramente transformadoras surgem quando abrimos as gavetas todas ao mesmo tempo. Foi esse caminho, cheio de desvios e intersecções, que me levou a tornar-me um systems thinker.

A minha formação começou na Medicina, seguida de estágios em Medicina Geral e Psiquiatria. Ali aprendi que nenhum sintoma vive isolado — cada pessoa é um sistema complexo de emoções, crenças, corpo, ambiente e relações. Mais tarde, como programador de computadores, descobri a mesma lógica noutro campo: pequenos erros em pontos distantes de um sistema podem criar efeitos enormes mais adiante. O mundo começava a revelar o seu padrão — tudo está ligado por fluxos, ciclos e feedback.

A especialidade de Cirurgia em Nova Iorque e o Diplomate do American Board of Surgery aprofundaram ainda mais esta visão. A cirurgia é o pensamento sistémico em estado puro: cada decisão influencia o metabolismo, a hemodinâmica, o pós-operatório e a vida futura do paciente. Como investigador científico, percebi que a ciência avança justamente quando conectamos áreas diferentes, quando vemos relações onde antes víamos apenas factos dispersos.

A Programação Neurolinguística trouxe uma outra peça essencial: o modeling. Estudar como os especialistas pensam, estruturam informação e tomam decisões é, no fundo, compreender sistemas humanos complexos. O MBA na Edinburgh Business School acrescentou a visão económica e organizacional — mais um sistema interligado, onde pequenas mudanças estruturais transformam comportamentos colectivos.

Ao longo dos anos, como colaborador de órgãos de comunicação social, empreendedor, Coach Santé em Nice, escritor e autor de ensaios filosóficos, continuei a observar a mesma verdade: nada existe sozinho. Cada fenómeno emerge de relações invisíveis.

Foi essa acumulação de perspectivas — clínica, tecnológica, psicológica, filosófica e económica — que me permitiu vislumbrar um novo paradigma para a inteligência artificial: o Persona Modeling Framework (PMF), desenvolvido em co-criação com o ChatGPT. A ideia nasceu precisamente da capacidade que a IA tem de amplificar o pensamento sistémico — de ligar padrões, cruzar disciplinas e transformar dados dispersos em conhecimento integrado.

Este é o apelo que deixo às novas gerações:

Estudem diferentes áreas. Combinem saberes. Aprendam a ver o mundo como um sistema, não como secções isoladas.
O futuro — seja na saúde, na ciência, na economia ou na IA — pertence a quem consegue unir pontos que os outros ainda nem sequer sabem que estão no mesmo mapa.

Ser um systems thinker não é um título.
É uma forma de olhar o mundo.
E essa forma muda tudo.

THE NEXT AI REVOLUTION: Giving Machines a Mind of Their Own Kindle Edition

SYSTEMS THINKER

 

O que é, afinal, um systems thinker?

Vivemos num mundo onde quase tudo está ligado: saúde, economia, tecnologia, educação, relações humanas, ecossistemas. Porém, continuamos muitas vezes a analisar problemas como se fossem peças isoladas de um puzzle. É aqui que surge a figura do systems thinker — alguém que pensa em sistemas, não em fragmentos.

Um systems thinker é uma pessoa que procura compreender como as partes interagem, e não apenas como funcionam individualmente. Em vez de perguntar “qual é a causa?”, pergunta antes: “como é que este fenómeno emerge da rede de relações que o envolve?” Esta diferença de perspectiva muda tudo — e produz decisões mais inteligentes, mais sustentáveis e menos reativas.

No pensamento sistémico, causas e efeitos deixam de ser linhas direitas. São círculos de retroalimentação, ciclos que se reforçam ou se equilibram. Um exemplo simples: no burnout, não basta analisar o excesso de trabalho. É preciso observar o ciclo entre expectativas, hábitos, ambiente profissional, crenças pessoais, sono, nutrição e significado da própria vida. Quando compreendemos o sistema, compreendemos a pessoa — e abrimos portas para soluções verdadeiras, não apenas paliativas.

Um systems thinker desenvolve três competências-chave:

  1. Ver padrões em vez de eventos.
    O que parece um problema isolado é muitas vezes um sintoma recorrente de uma dinâmica oculta.

  2. Mapear relações.
    Pergunta sempre: “o que influencia o quê?” e “como esta mudança repercute o resto?”.

  3. Pensar a longo prazo.
    Sabe que intervenções rápidas podem gerar efeitos adversos mais tarde — e que pequenas mudanças estratégicas podem transformar todo o sistema.

Num mundo complexo como o nosso, o pensamento sistémico não é apenas útil: é indispensável. Permite tomar decisões mais informadas, liderar com mais clareza e compreender que muitos desafios — pessoais, organizacionais ou sociais — não se resolvem com soluções lineares.

Ser um systems thinker é, no fundo, aprender a ver o invisível: as estruturas, os fluxos e os vínculos que moldam o comportamento das pessoas, das organizações e até de nós próprios. Quando vemos o sistema, ganhamos poder. Quando o ignoramos, tornamo-nos reféns dele.

04 dezembro 2025

Dois irresponsáveis

 



Faz hoje 45 anos que ocorreu o acontecimento que deu origem à maior palhaçada parlamentar da democracia portuguesa - as dez comissões parlamentares de inquérito à queda do avião que vitimou o primeiro-ministro Sá Carneiro e a sua comitiva, bem como os dois tripulantes.

A última (2015), à semelhança de outras anteriores, concluiu pela tese de atentado.

A verdade é diferente. O piloto foi um irresponsável e, na circunstância, o primeiro-ministro Sá Carneiro que aceitou viajar naquele avião não lhe ficou atrás.

Como diz o técnico de aviação Lito de Sousa: "Eu já teria saído desse avião há muito tempo" (cf. aqui, min. 10:29)