16 março 2024

Case-study: actualização (21)

 (Continuação daqui)

Pedro Vaz Patto e Francisco Marcolino, os dois juízes que levaram Portugal a responder no TEDH


21. Fascismo judicial

Entre todos os temas relacionados com o meu Case-study existe um que tem obrigatoriamente de ser tratado antes de ser proferida a decisão do TEDH - a qual está prevista para a próxima terça-feira -, sob pena de se converter num caso de "previsões só no final do jogo".

É precisamente a questão da previsibilidade da justiça.

A probabilidade que eu atribuo de o TEDH decidir a meu favor no próximo dia 19 não é meramente 50%. A probabilidade que atribuo a esse resultado é 99,9%, quer dizer, na prática, eu tenho a certeza absoluta que o TEDH decidirá a meu favor.

E porquê?

Porque o TEDH tem uma cultura de jurisprudência democrática, significando um conjunto de regras, que são conhecidas publicamente, e que ele aplica uniformemente à resolução de cada classe de casos.

No caso em apreço trata-se do conflito entre o direito à liberdade de expressão e o direito à honra. A jurisprudência do TEDH sobre esta matéria é antiga e precisa (cf. aqui), e o meu caso cai que nem uma luva dentro dela. Desde o início que eu estive sempre seguro que o TEDH me daria razão e por isso chamei a este caso um caso-de-escola (cf. aqui).

Aliás, a maneira como o TEDH resume o caso no press-release que publicou na passada quinta-feira (cf. aqui) é indiciadora de que a decisão me será favorável. É quando diz, referindo-se ao Rangel: "... the director of a law firm, who happened to be a well known politician and a member of the European Parliament..."

Nesta frase o Rangel é apanhado by the balls numa insanável situação de conflito de interesses (corrupção), e fica sem salvação. Como político e eurodeputado, ele foi eleito para prosseguir o interesse público e utiliza o cargo para promover interesses privados, dele próprio e dos seus sócios da Cuatrecasas.

Em Portugal, qualquer pessoa que espera uma decisão judicial não está tão convicta como eu estou em relação à decisão do TEDH. Normalmente, atribui uma probabilidade de 50% que a decisão seja num sentido ou no outro. Neste tipo de casos, a justiça em Portugal  é aleatória, uma lotaria, moeda-ao-ar, absolutamente imprevisível.

E isto é assim porque não existe uma cultura de jurisprudência democrática no país. Aquilo a que os juristas portugueses chamam jurisprudência não é jurisprudência nenhuma mas um amontoado de decisões judiciais divergentes e frequentemente contraditórias, e sem qualquer nexo racional entre elas.

Esta cultura abre a porta à arbitrariedade, tornando cada  magistrado um potencial ditador que pode arruinar a vida arbitrariamente a qualquer cidadão. É uma cultura de fascismo judicial. Ela permite a qualquer fariseu ou matarruano, qualquer chico-esperto ou parvalhão, qualquer malfeitor que exista na magistratura judicial ou no Ministério Público acusar ou condenar um inocente.

É esta cultura de fascismo judicial e profundamente anti-democrática, de total arbitrariedade e insegurança judicial, que ditou a minha condenação no Tribunal da Relação do Porto e, mais recentemente, deitou abaixo um governo democrático da nação e ainda um governo democrático na Madeira.

Na idade em que estou existe uma irreprimível tendência para dar conselhos, que são também lições de vida. Um dos conselhos que tenho para dar aos jovens portugueses e àqueles que apreciam a democracia é o seguinte: "Não acabem com esta cultura de fascismo judicial e vão ver como ela dará cabo da democracia". 

Pela minha parte, julgo ter dado uma contribuição, que se prolongará pelas próximas semanas ou talvez mesmo meses. 

14 março 2024

Forthcoming

 




Press-release de hoje do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

Forthcoming judgments and decisions

The European Court of Human Rights will be notifying in writing ten judgments on Tuesday 19 March

2024 and 23 judgments and / or decisions on Thursday 21 March 2024.

Press releases and texts of the judgments and decisions will be available at 10 a.m. (local time) on

the Court’s Internet site (www.echr.coe.int).


Tuesday 19 March 2024

Almeida Arroja v. Portugal (application no. 47238/19)

The applicant, José Pedro Almeida Arroja, is a Portuguese national who was born in 1954 and lives in

Oporto. He is an economist and university professor and was a weekly political commentator on a

daily news programme broadcast by the private television channel Porto Canal.

The case concerns his criminal conviction for aggravated defamation and insulting a legal entity for

having implied, during one such broadcast, that a legal opinion provided to a public hospital by the

director of a law firm, who happened to be a well-known politician and member of the European

Parliament, had been motivated by political interests.

The applicant complains that his conviction was in breach of his right to freedom of expression

under Article 10 (freedom of expression) of the European Convention on Human Rights.


Fonte: cf. aqui

Um admirador das contas

 



ECO: "Um admirador das contas de Salazar e um nome familiar do PSD. Os rostos do programa macroeconómico do Chega" (cf. aqui)


Comentário: Não tive qualquer participação no Programa do Chega (que, de resto, é bastante socialista para o meu gosto: cf. aqui) nem sequer conheço o Eduardo Teixeira que é referido na notícia.


Actualização às 13:00: Entretanto, a notícia foi corrigida e os títulos e subtítulos também.

12 março 2024

CHEGA (17)

 (Continuação daqui)




17.  Revolta

Conforme referi no post que iniciou está série (cf. aqui), e as eleições de domingo parecem ter confirmado, o Chega, mais do que um Partido Político, parece um Movimento Popular de revolta contra a democracia liberal ou partidária em Portugal, pelo menos tal como ela tem sido praticada pelos dois partidos liderantes, PS e PSD.

Como Partido Político, falta-lhe coerência ideológica. Começou com um programa nacionalista e liberal nas eleições de 2019, manteve essa tónica programática nas eleições de  2022, mas virou à esquerda no programa apresentado às últimas eleições (cf. aqui).

O liberalismo desapareceu, o nacionalismo foi bastante atenuado e o que ressalta do programa é uma tónica social-democrata em que o Estado é o centro da sociedade e a igualdade é um valor a perseguir, chegando ao ponto de promover a igualdade entre os animais e as pessoas. A ideia do bem-comum desaparece para dar lugar à promoção de interesses sectoriais e corporativos.

__________________________

Declaração de interesses. Eu votei no Chega (nas eleições de 2022 fui mesmo seu mandatário nacional e autor do seu programa económico), mas não pelo seu programa eleitoral de agora. Foi um voto de protesto (cf. aqui) à semelhança do que terá acontecido com mais de um milhão de portugueses. Entretanto, passei a achar graça aos jornalistas e comentadores que dizem que o Chega é um partido de direita. Não é isso que decorre do seu programa eleitoral. 

Mil e uma (32)

 (Continuação daqui)

Mapa religioso da Europa


32. O mais puro e genuíno


Todos os países da Europa Ocidental que, a seguir à Reforma Protestante do século XVI, permaneceram predominantemente católicos tinham fronteiras com países de cultura protestante e, através desse contacto directo, foram mais ou menos influenciados pelo protestantismo.

Só existiu uma excepção a esta regra.

A regra era clara na Irlanda que vivia rodeada do protestantismo das Ilhas Britânicas, e também na Áustria que tinha ali ao lado a Alemanha, a pátria de Lutero. A muito católica Polónia também confinava com a protestante Alemanha. A Itália, onde se situa a sede do catolicismo, a norte faz fronteira com a Suíça, que é a pátria de Calvino.

A Espanha tinha na altura o maior império do mundo que, na Europa, se estendia até à Holanda, um dos focos do protestantismo. Foi a Espanha que, pela dimensão do seu império, assumiu a defesa do catolicismo contra o protestantismo, quer na Europa, quer na América, e a defesa não foi só de natureza teológica e intelectual, mas também envolveu guerras sangrentas onde se perderam milhões de vidas.

A França ficou no olho do furacão, e foi o centro de todos os conflitos. A norte e a leste, o luteranismo dos países escandinavos e da Prússia. A oeste, o anglicanismo e o calvinismo britânico. A sul, o catolicismo ibérico. Havia de ser em França que teria lugar o acontecimento político que resumia as rivalidades e as guerras religiosas entre católicos e protestantes - a Revolução Francesa (1789). 

Na Assembleia Constituinte que resultou da Revolução, os católicos sentaram-se à direita do rei e os protestantes à esquerda. É uma dicotomia que permanece até hoje, a direita é católica, autoritária, personalista, comunitária; a esquerda é protestante, democrática, impessoal, individualista.

Sem qualquer contacto directo com este conflito com o protestantismo, ficou apenas um país católico da Europa, a única excepção - Portugal. A Espanha serviu-lhe de tampão e protegeu-o da influência das ideias protestantes, e também das guerras religiosas.

Neste sentido, Portugal é bem capaz de ser o mais puro e genuíno país católico da Europa. 

Se é verdade que a democracia é uma instituição anti-católica e que, a prazo, não tem viabilidade nos países de tradição católica, então essa verdade será ainda mais verdade no mais puro e genuíno dos países católicos da Europa e talvez mesmo do mundo - Portugal. 

11 março 2024

Mil e uma (31)

 (Continuação daqui)

Homens e mulheres: a curva vermelha (mulheres) tem maior variância do que a azul (homens)


31. A ingovernabilidade

A democracia nasceu nos países protestantes, como a Inglaterra, com culturas masculinas centradas na figura do Homem - o princípio protestante "Solo Christus". Não é fácil a sua adaptação a países de cultura católica, como Portugal, que é uma cultura feminina centrada na figura da Mulher - Maria.

A razão é a instabilidade governativa que a democracia produz nos países de tradição católica conduzindo-os, a prazo, para a ingovernabilidade.

A Inglaterra, os EUA, o Canadá, a generalidade dos países anglo-saxónicos cuja cultura foi o berço da democracia, vivem há muitos anos com dois partidos políticos, que se alternam no poder, não existindo grandes diferenças entre eles. Um estaticista  diria que existe muito pouca variância na governação democrática nesses países.

Esta menor variância é também uma característica dos homens em relação às mulheres. Os homens são muito mais iguais entre si do que as mulheres, sendo as mulheres muito mais diferentes entre si do que os homens. A cultura protestante, sendo uma cultura masculina é uma cultura de igualdade e de pequena variância; pelo contrário, a cultura católica, sendo uma cultura feminina, é uma cultura de diferença e de grande variância. Em linguagem popular, é muito mais verdadeira a afirmação de que "Os homens são todos iguais" do que a afirmação de que  "As mulheres são todas iguais".

O bipartidarismo, imitado da democracia original dos países protestantes e que lhes assegura a estabilidade governativa, tende a desaparecer num país de tradição católica. A sua maior variância, que reflecte o seu gosto (feminino) pela variedade e pela diferença, acabará, a prazo, por fazer aparecer outros partidos (o Brasil já vai em 29), alguns com um peso significativo no eleitorado, e que ameaçam a alternância democrática dos dois maiores partidos do sistema.

Na prática, esta multiplicidade de partidos com um peso significativo no eleitorado torna cada vez mais difícil encontrar soluções que assegurem a estabilidade governativa e, com o tempo,  arrastam o país para uma situação de ingovernabilidade que, no limite, acabará com a democracia.

Portugal pode ter dado, nas eleições legislativas de ontem, um passo importante nesta direcção.  

(Continua acolá)

Mil e uma (30)

 (Continuação daqui)



30. O debate 

Para a cultura protestante, a liberdade de pensamento e de expressão possui um carácter sagrado porque é pelo estudo das Escrituras e pela discussão livre das ideias acerca da sua interpretação que cada pessoa chega a Deus. O debate livre é o caminho para Deus.

E para um católico?

Para um católico o debate livre das ideias não serve para nada porque o caminho para Deus é o caminho para a missa e para a eucaristia dominical presidida pelo padre.

Tudo aquilo que se refere a ideias na cultura protestante degenera em pessoalização na cultura católica, e assim acontece com o debate.

Na cultura protestante, o debate é um processo construtivo, orientado para a Verdade e para Deus, onde cada um é suposto acrescentar às contribuições dos demais. Pelo contrário, na cultura católica o debate torna-se um processo destrutivo, de confronto de personalidades, onde cada um procura fazer parecer mal os demais para que ele próprio possa sobressair como o melhor dentre eles.

A própria palavra "discussion" que em inglês tem o sentido de um debate construtivo das ideias, quando traduzida para uma língua católica, como o português - "discussão" -, rapidamente adquire um sentido pejorativo de uma altercação entre pessoas exaltadas.

Quer dizer, na sua verão original, a democracia, cujo direito fundacional é precisamente o direito à liberdade de  pensamento e de expressão, é um processo público de discussão orientado para a Verdade e para o Bem, onde cada um - se não tiver uma contribuição positiva para dar - está eticamente impedido de denegrir a contribuição dos outros.

Pelo contrário, na sua imitação católica, a democracia, cujo direito principal se torna o direito de voto - onde cada cidadão represente um Zé Ninguém (cf. aqui) - converte-se num processo de altercação entre os principais líderes partidários, em que o objectivo de cada um é fazer parecer mal os outros, e em que o melhor de todos eles é aquele que mais consegue fazer parecer mal os outros.

Na sua versão original e protestante, a democracia é um processo social construtivo onde cada um está obrigado a fazer parecer bem os outros porque todos estão orientados para a Verdade e para o Bem. Na sua imitação católica, a democracia converte-se num processo social destrutivo onde cada um procura fazer parecer mal os outros, acabando generalizadamente na agressão verbal, na má-língua, na suspeita e na calúnia. 

(Continua acolá)

Um passo de gigante (194)

 (Continuação daqui)



194. Uma criatura de Deus


Ao Ministério Público eu tenho chamado diversamente "Corporação de criminosos", "Pide da democracia" ou "Diabo à solta".

Mas, talvez porque o Diabo seja uma criatura de Deus, às vezes Deus escreve direito por linhas tortas.

Nas eleições de ontem, em termos relativos, o grande vencedor foi o Chega e os grandes perdedores foram os partidos do sistema, PS e PSD.

O principal responsável por esta vitória foi o Ministério Público.

Sem o Ministério Público não teria havido eleições e o Chega não teria tido este resultado.

Para os partidos do sistema fica uma lição. Ao longo de quase 50 anos a governarem o país em alternância tiveram mais do que tempo e oportunidade para fazerem uma reforma de justiça. 

Não a fizeram. Agora, têm aí o resultado.


10 março 2024

Mil e uma (29)

 (Continuação daqui)



29. Um Papa dos crimes

De todas as características que distinguem a cultura católica da cultura protestante, a mais importante é talvez o personalismo. É o personalismo católico que torna cada indivíduo uma pessoa, que lhe confere uma personalidade que o distingue de todos os outros, que faz dele, enfim, um ser único e irrepetível, uma espécie de joia humana, como não há outra igual.

A personalidade afirma-se pela diferença, por ser aquilo que os outros não são, por não ser aquilo que os outros são, por fazer aquilo que os outros não fazem e por não fazer aquilo que os outros fazem. O protestantismo acabou com a diferença para enfatizar a igualdade entre todos os seres humanos, e fez de cada pessoa um mero indivíduo. Para isso muito contribuiu o papel secundário que atribuiu à mulher em relação ao homem porque existe muito mais diferença entre as mulheres do que entre os homens. A diferença é um atributo feminino muito mais que masculino. O contrário para a igualdade.

Na cultura protestante, que é uma cultura masculina e de igualdade, é possível formar consensos, estabelecer regras gerais e abstractas que se aplicam a todos porque todos são supostos iguais. Na cultura católica, que é uma cultura feminina e de diferença, reina a discórdia, cada um é diferente dos outros, na realidade, ele afirma-se precisamente por ser diferente dos outros, não há regras gerais, cada caso é um caso.

Esta é a razão para a cultura de jurisprudência que existe nos países de tradição protestante, a que fiz referência no post anterior - uma cultura que se traduz na elaboração de regras gerais e abstractas de interpretação das leis -  e que não existe num país católico como Portugal em que, a respeito de cada classe de casos, a "jurisprudência" se traduz num amontoado de decisões judiciais divergentes e frequentemente contraditórias, sem qualquer nexo racional que as una.

E por que é que as coisas se passam assim num país católico como Portugal?

Por virtude do personalismo católico que está presente nos juízes como em  qualquer outro português. Perante um caso semelhante ao do seu colega, um juiz português afirma-se na sua qualidade superior de juiz se proferir uma sentença diferente da do seu colega, e até oposta. 

(Levado ao extremo, num país católico o paradigma do grande juiz  - o super juiz - é tão diferente dos outros juízes que acaba por não ser juiz nenhum, mas um acusador que põe as pessoas arbitrariamente na cadeia).

É preciso não esquecer que a religião católica é uma religião de pessoas, na realidade, uma religião de uma pessoa - Jesus Cristo, representado pelo Papa - uma pessoa que está acima da lei e que ele próprio tem o poder para fazer as leis e as interpretar. Para o português comum, o paradigma da felicidade, o seu encontro com Deus, realiza-se quando consegue chegar a uma posição onde é ele o Papa, o chefe, o mandarim, o rei absoluto, em que é ele próprio, e mais ninguém, quem define o que é a lei e a sua interpretação, sem ter de dar satisfações a ninguém.

O personalismo católico torna impossível qualquer tentativa de fazer jurisprudência em Portugal, a qual se resume a mera casuística que torna a justiça radicalmente arbitrária - cada cabeça sua sentença. E se isto é assim na magistratura judicial, na magistratura do Ministério Público a situação não é mais brilhante.

Nos termos da Constituição, o Ministério Público é uma magistratura hierarquizada que tem no seu vértice o Procurador-Geral da República, segundo a qual cada magistrado tem de prestar contas e obedecer aos seus superiores. Porém, num país marcado pelo personalismo católico cada magistrado ambiciona ser o patrão de si próprio, ser ele a decidir o que é crime e o que não é crime, quem é criminoso e quem não é criminoso, sem ter de dar explicações a ninguém.

A força do Sindicato conseguiu acabar com esta relação hierárquica e dar a cada magistrado do Ministério Público o poder para ser patrão de si próprio, não ter de prestar contas a ninguém,  ser um Papa dos crimes, decidindo ele próprio, pela sua própria cabeça,  o que é crime e o que não é crime, o que é indício e o que não é indício, o que é suspeita e o que não é suspeita, se o vizinho é criminoso ou não é criminoso, o mesmo para o presidente do clube de futebol adversário ou para o chefe do partido político que ele abomina.

O povo português não é muito letrado nem tem muito julgamento porque sempre se habituou a receber a Verdade a partir da autoridade dos padres sem ter de exercitar a sua própria cabeça e o seu próprio julgamento para lá chegar. Por isso, é pertinente a pergunta:

-Já se imaginou o que é dar a um matarruano este poder absoluto para acusar ou lançar suspeitas sobre qualquer pessoa?

É por isso que os portugueses hoje vão às urnas.  Por causa do Ministério Público e da  "Justiça" que têm.

(Continua acolá)

Mil e uma (28)

 (Continuação daqui)



28. Jurisprudência

Uma das situações em que a pobre tradição jurídica de um país católico como Portugal é mais danosa para a democracia é a que diz respeito à jurisprudência.

A democracia é um regime de regras, em que cada um é livre de prosseguir os fins que se propõe na vida, mas dentro do quadro definido pela Lei, e é por isso que ao regime democrático anda associada a ideia do Estado de Direito ou Rule of Law.

Fazer leis claras e que todos possam compreender é um bem essencial na democracia, mas não basta. Mesmo as leis mais claras às vezes são passíveis de mais do que uma interpretação. Daí que a interpretação que os tribunais dão às leis seja uma matéria igualmente crucial para a democracia, a fim de que cada cidadão possa "saber as linhas com que cose".

A jurisprudência é o conjunto de princípios ou regras que os tribunais usam na interpretação das leis e que, de forma geral e abstracta,  se aplicam a cada classe de casos judiciais. É a jurisprudência que, num país de tradição democrática, obriga os juízes - também eles -, a submeterem-se a regras nas decisões que tomam, evitando decisões arbitrárias ou persecutórias. 

Suponhamos que, durante uma arruada eleitoral, um cidadão se dirige a um político e lhe diz "Vai para o caralho", que é a expressão ofensiva mais usada pelos portugueses. O político queixa-se ao Ministério Público por ofensa à sua honra (crime de injúria), o qual comporta uma pena que pode chegar a prisão. 

Está aqui em causa o conflito entre o direito à honra do político e o direito à liberdade de expressão do cidadão. Há crime ou não há crime?

Em Portugal, ninguém sabe. É um caso de "previsões só no final do jogo". Existem dezenas e dezenas de decisões judiciais em que a expressão "Vai para o caralho" foi considerada crime pelos tribunais portugueses (prevalecendo o direito à honra sobre o direito à liberdade de expressão) e outras tantas em que não foi considerada crime (prevalecendo o direito à liberdade de expressão sobre o direito à honra). 

É diferente no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que é um tribunal criado por países com tradição democrática e influência protestante. Este tribunal publica a jurisprudência de cada classe de casos que vão à sua apreciação. À luz dessa jurisprudência, cada cidadão sabe a priori se mandar um político para o caralho é crime ou não é crime. A resposta é um rotundo e claríssimo não. 

Na verdadeira tradição democrática, a jurisprudência inclui as regras a que os próprios juízes têm de obedecer nas decisões que tomam. São estas regras, formuladas de maneira geral e abstracta, que asseguram um dos mais importantes princípios de justiça numa sociedade democrática - o princípio da segurança jurídica.

Então, e os tribunais portugueses não produzem jurisprudência?

A resposta a  esta questão é um pouco divertida. Tendo Portugal chegado tardiamente à democracia e possuindo um cultura católica, que é uma cultura mimética que imita tudo,  também se faz jurisprudência por cá. Na verdade, o site de qualquer tribunal superior do país tem lá uma secção de jurisprudência.

A imitação é que não é muito boa. É que a verdadeira jurisprudência é um conjunto de regras gerais e abstractas que se aplicam a cada classe de casos, ao passo que para os tribunais portugueses a jurisprudência é um amontoado de decisões judiciais, quase sempre divergentes e frequentemente contraditórias, acerca das quais não é possível discernir qualquer fio condutor.

Num caso, um cidadão foi condenado por mandar para o caralho um político. No outro foi absolvido por mandar para o caralho um árbitro de futebol. A justiça torna-se aleatória e ninguém acredita nela.

(Continua acolá)

09 março 2024

Mil e uma (27)

 (Continuação daqui)



27. Às mãos 

A circunstância de a religião católica ser uma Religião de Pessoas, centrada na figura de Cristo, e não uma religião de Leis (Escrituras), como a judaica ou a protestante, tem uma consequência dramática para o Estado de Direito (Rule of Law) que acompanha a democracia nos países tocados pelo catolicismo.     

Trata-se da pobre tradição jurídica existente nos países de tradição católica. Nestes países, os juristas e a justiça são as grandes desgraças da democracia e é pela justiça, com os juristas à frente, que a democracia acabará por se desacreditar e morrer.

No âmbito da civilização judaico-cristã, quem quiser conhecer uma boa tradição jurídica, deve procurá-la, em primeiro lugar, na cultura judaica, que é uma cultura de leis e a mais antiga da civilização. A seguir, deve procurá-la na cultura do protestantismo-cristão, também ela uma cultura de leis, aliás muito influenciada pelo judaísmo. Em último lugar, encontrará a cultura católica onde a tradição jurídica - se é que se pode falar de uma tradição - é uma tragédia.

Não é demais insistir. Num país de tradição católica a democracia morre às mãos dos juristas. 

Curiosamente, os juristas utilizam, na sua actividade profissional, um traje que imita o dos padres, que são a figura cimeira da cultura católica no seu papel de sacerdotes,  pais e professores. Eles querem fazer-se passar por padres. Mas ninguém se deve deixar enganar. Trata-se de  uma imitação abusiva, um disfarce. É para iludir o carácter imensamente divisivo e destrutivo que os juristas têm na cultura católica.

Aquilo que um padre faz, que é unir as pessoas, um jurista desfaz, que é dividi-las.

(Continua acolá)

08 março 2024

Mil e uma (26)

 (Continuação daqui)



26. Um Estado Pessoal

O judaísmo é uma Religião do Livro, um religião que está centrada num Livro sagrado (Bíblia Judaica, correspondendo aos cinco primeiros Livros do Antigo Testamento). O judaísmo é também uma Religião de Direito (do latim "directus", uma palavra que significa regra), uma Religião de Regras. A religião judaica exprime-se em 613 regras ou mandamentos que os judeus devem observar.

A ideia do Estado de Direito é, em primeiro lugar, uma criação judaica - a ideia que põe a lei acima de tudo, acima das pessoas inclusivé porque, para os judeus, Deus está na Lei, não nas pessoas.

O cristianismo, tal como interpretado pela Igreja Católica, não é nada disto. O cristianismo é uma Religião de Pessoas porque está centrado numa Pessoa - Jesus Cristo. Deus está numa Pessoa - Cristo -, e só secundariamente no Livro. O cristianismo reconhece a importância do Livro sagrado (Bíblia Católica), mas esse nem sequer é o Livro que a Igreja mais recomenda aos crentes. Este último é o Catecismo da Igreja Católica, que interpreta a Bíblia à luz dos ensinamentos de Cristo e da experiência histórica da humanidade (Tradição). 

O cristianismo é também uma Religião da Palavra (Pregação ou Persuasão), a Palavra de Cristo que Ele transmitiu aos apóstolos - a Pedro em primeiro lugar -, e que deste, por uma processo de transmissão ("tradição") ou sucessão apostólica, chegou até nós na pessoa do Papa Francisco.  

A ideia de Estado conforme à cultura católica, não é a ideia de um Estado de Direito, mas a de um Estado Pessoal, de que o exemplo acabado é o Vaticano. Nele, o Chefe de Estado está acima da lei, é ele que, em cada momento, faz a lei, ele tem um poder supremo e absoluto, que a todo o momento pode exercer, para alterar as leis existentes, e criar novas leis. Este é um Estado que põe as pessoas acima da lei e que olha para a lei como um instrumento ao serviço das pessoas e não, como o Estado de Direito, que olha para as pessoas como um instrumento ao serviço da lei.

Para os católicos, Cristo é ao mesmo tempo homem e Deus e essa pessoalidade do cristianismo católico exprime-se, em cada momento, na pessoa do Papa e, mais geralmente, nas pessoas dos padres, que são imitações de Cristo. Para os católicos também, e ao contrário dos judeus -, para quem Deus está somente no Livro (Bíblia judaica) -, Deus está no Livro (Bíblia Católica) e na Tradição. A Tradição é o processo de transmissão dos ensinamentos de Cristo, à luz da experiência da humanidade, mantido pela Igreja e pela sucessão apostólica dos Papas.

A revolta protestante do início do século XVI foi desencadeada por Lutero na Prússia e teve um largo apoio dos judeus que poucos anos antes, por acção dos reis católicos Fernando e Isabel, haviam sido expulsos de Espanha - que era, na altura, o centro do catolicismo no mundo -, e foi largamente influenciada pelo judaísmo.

Rejeitando os Papas e a Tradição, e acreditando que Deus se encontra apenas no Livro Sagrado (Bíblia protestante), segundo o princípio protestante "Sola Scriptura", os protestantes aproximaram-se dos judeus. O cristianismo protestante tornou-se uma Religião do Livro, uma letra morta, um conjunto de regras que os crentes deviam estudar,  discutir e adoptar nos seus comportamentos diários. O protestantismo, tal como o judaísmo, tornou-se uma Religião de Direito, uma Religião de Regras. O Cristo pessoal e vivo do catolicismo, que está constantemente no meio de nós, na pessoa do Papa, desapareceu de cena. 

O Estado de Direito (Rule of Law) que hoje existe em Portugal é uma tradição judaico-protestante, totalmente fora da cultura católica dos portugueses. Os portugueses não acreditam que  a lei deva estar acima das pessoas. Os portugueses acreditam que as pessoas, pelo menos uma Pessoa - um homem dentre eles - deve estar acima da lei e ser Ele o guardião das tradições e das leis que se aplicam a todos.

O Estado de Direito não tem qualquer futuro em Portugal. É uma heresia cultural.

(Continua acolá)