(Continuação daqui)
59. Uma máfia não perdoa deslealdades
Quando, há cerca de quatro anos (Julho de 2021), numa daquelas operações espalhafatosas e muito medievais, o empresário Joe Berardo foi detido às ordens do Ministério Público, por essa altura eu já reclamava para mim próprio uma certa expertise sobre o funcionamento do sistema de justiça português.
E logo me pareceu que este caso continha singularidades que careciam de explicação.
A primeira era a de que, juntamente com Joe Berardo, foi detido o seu próprio advogado. Ora - pensei - este advogado não deve pertencer à Cuatrecasas porque, se pertencesse, o Ministério Público não se atrevia a pedir a sua detenção.
Uma pequena pesquisa na internet e logo ficou confirmada a minha tese. Este advogado tem uma pequena empresa de advocacia, que possui o seu próprio nome - André Luiz Gomes & Associados -, deve ser só ele e mais um pequeno número de advogados.
Mas a maior singularidade deste caso não era esta, vinha a seguir. O Ministério Público imputou ao advogado André Luiz Gomes mais crimes (20) do que imputou ao seu cliente Joe Berardo (13). Um caso insólito, provavelmente nunca visto. Aos olhos do Ministério Público, o advogado era mais criminoso do que o seu próprio cliente.
Os crimes imputados a ambos eram os esperados: branqueamento de capitais, burla qualificada, fraude fiscal, etc.
Como explicar este aparente paradoxo - um advogado mais criminoso que o seu próprio cliente -, que formação tinha tido este advogado, e onde a adquiriu, para conseguir um feito que é dificilmente entendível ao espírito do cidadão comum que ainda vê o advogado como um agente da justiça, e não como um criminoso?
De acordo com a comunicação social da altura,
"(...) André Luiz Gomes é considerado pelo Ministério Público o mentor do esquema que terá ajudado o empresário a dissipar património e valores através de empresas veículo por forma a conseguir escapar aos seus credores, entre os quais estão três bancos: Caixa Geral de Depósitos, BCP e Novo Banco, aos quais tem dívidas de quase mil milhões de euros" (cf. aqui, ênfases meus).
O mistério começa a desvendar-se quando uma rápida pesquisa na internet revela que André Luiz Gomes foi sócio da sociedade de advogados Cuatrecasas entre 2005 e 2015 (cf. aqui), altura em que saiu para formar a sua própria sociedade de advogados, a André Luiz Gomes & Associados (cf. aqui), que foi constituída arguida no processo.
O caso Berardo inicia-se com a assinatura de contratos de empréstimo com os bancos entre 2006 e 2009 para tomar de assalto o BCP. Ora, nesta altura, quem prestava serviços jurídicos ao empresário Berardo era a Cuatrecasas, de que André Luiz Gomes era sócio, e não este advogado a nível individual.
O esquema começa a ser montado poucos anos depois quando Berardo não paga as dívidas e os bancos vão sobre ele. O esquema para subtrair o património de Berardo à penhora por parte dos bancos está em pleno funcionamento em 2013, conforme relata a comunicação social da altura. Nessa altura, quem continua a prestar serviços jurídicos a Joe Berardo é ainda a Cuatrecasas, e não o advogado André Luiz Gomes a título individual, embora pareça certo que entre os recursos humanos mobilizados pela Cuatrecasas para tão importante cliente este advogado é o principal.
Não é demais insistir. Até 2015 Joe Berardo é cliente da Cuatrecasas, e não do advogado André Luiz Gomes, e nessa altura o esquema para ludibriar os bancos já estava em pleno funcionamento. Foi montado na Cuatrecasas.
Só a partir de 2015 é que André Luiz Gomes sai da Cuatrecasas para constituir a sua própria sociedade de advogados, a qual dá continuidade ao esquema montado antes e posto em funcionamento na Cuatrecasas. Naturalmente, a maioria dos sócios fundadores da André Luiz Gomes & Associados vieram da Cuatrecasas e o cliente Berardo também transitou da Cuatrecasas para a nova sociedade. O esquema seguiu com eles.
A conclusão a tirar é que a mentora do esquema foi a Cuatrecasas, sendo André Luiz Gomes o seu principal executor, e a sociedade André Luiz Gomes & Associados deu-lhe continuidade. Não é de mais insistir que na altura da detenção, o Ministério Público imputou ao advogado mais crimes (20) do que ao seu próprio cliente (13). Segundo a acusação, aquilo que o advogado André Luiz Gomes, primeiro a partir da Cuatrecasas (cf. aqui), depois na sua própria sociedade de advogados, andou a fazer estes anos todos em relação ao seu cliente Berardo, não foi prestar serviços de advocacia nenhuns.
Foi liderar uma quadrilha de burlões.
Este caso veio trazer a público uma evidência, que há sociedades de advogados - como a Cuatrecasas e a André Luiz Gomes & Associados - que são coios de autênticas quadrilhas de criminosos, algo que eu já sabia por experiência própria e que, no fim de contas, é o tema deste livro.
Está desvendado o mistério acerca de quem foi a mentora do esquema e onde é que o advogado André Luiz Gomes adquiriu os talentos para o prosseguir no seio da sua própria sociedade de advogados. Só falta explicar a extraordinária animosidade do Ministério Público em relação a ele, não apenas lhe imputando mais crimes que ao seu próprio cliente, mas - caso raríssimo na prática do Ministério Público - mandando prender o advogado juntamente com o seu cliente. E falta também explicar por que é a sociedade André Luiz Gomes & Associados foi constituída arguida no processo e à Cuatrecasas nada aconteceu.
Para responder a esta questão, vou relembrar aquilo que eu próprio teria deixado por dizer caso tivesse morrido antes ou durante a operação ao coração a que fui submetido de urgência em Março de 2019 enquanto decorria o processo que a Cuatrecasas e o seu director Rangel moveram contra mim.
Aquilo que tinha deixado por dizer é que, durante o julgamento de primeira instância no Tribunal de Matosinhos, eu tinha ficado com a fortíssima convicção de que a Cuatrecasas tinha o Ministério Público na mão.
De volta ao caso Berardo. Durante dez anos (2005-2015) André Luiz Gomes foi sócio da Cuatrecasas. Até que em 2015 ocorreu um acontecimento catastrófico para Joe Berardo e para o próprio advogado André Luiz Gomes. O advogado saiu da Cuatrecasas, em situação de litígio e conflito aberto com o director Manuel Castelo Branco, levando consigo o cliente Joe Berardo (e, provavelmente, outros apetitosos clientes), e ainda um punhado de advogados para formar a sua própria sociedade.
O advogado André Luiz Gomes deu cabo da sua própria vida nesse dia, e da do seu cliente também.
O advogado André Luiz Gomes terá aprendido muita coisa na escola da Cuatrecasas, como a de burlar bancos, mas esqueceu-se de um ensinamento básico. Uma máfia não perdoa deslealdades.
(Continua acolá)