(Continuação daqui)
8. Middletown, Ohio
Quem ler o livro "Hillbilly Elegy" (cf. aqui), um relato autobiográfico do vice-presidente americano J. D. Vance, vai compreender a lógica por detrás da política tarifária da Administração Trump que está agora a agitar o mundo. E vai compreender mais, vai compreender que o populismo é um movimento político verdadeiramente dirigido ao povo (demos) e, portanto, essencialmente democrático, e vai compreender ainda certas características do modo de pensamento que o caracteriza.
Mas antes mesmo de o livro de Vance e do filme que ele inspirou se terem tornado conhecidos, já o Joaquim aqui no Portugal Contemporâneo, colocava um post que fazia prever o que estava para chegar. O post tinha o título "o que aconteceu ao sonho americano?" e reproduzia, em parte, um artigo de Jeremy Warner no Telegraph. O post foi publicado em 2016, no dia do meu aniversário: cf. aqui.
J. D. Vance foi criado pelos avós maternos na pequena cidade de Middletown no Ohio, uma cidade que nasceu e se desenvolveu em torno da multinacional Armco, produtora de aço. Os avós, oriundos dos Apalaches, tinham-se mudado para Middletown logo depois da Segunda Guerra quando o avô Vance tinha conseguido um emprego na Armco, onde viria a passar toda a sua vida profissional, até atingir a idade da reforma.
A Armco era o único grande empregador em Middletown e a cidade prosperou em paralelo com a prosperidade da empresa, que oferecia à população empregos estáveis, razoavelmente bem remunerados, pensões de reforma para os seus funcionários e até bolsas de estudo para os filhos dos seus empregados, para além de ser o grande patrocinador de instituições e eventos desportivos e culturais na cidade.
Até que, em meados da década de 1990, a concorrência chinesa na indústria do aço, com os seus baixíssimos salários, chegou a Middletown e a Armco foi à falência.
A falência da Armco foi devastadora para a pequena comunidade de Middletown. O desemprego na cidade tornou-se generalizado; famílias foram destruídas pelo divórcio ("casa onde não há pão..."), como a de Vance; os vícios associados ao ócio, como o álcool e a droga, prosperaram, atingindo severamente a mãe de Vance; a criminalidade aumentou e milhares de pessoas passaram a viver à custa da Segurança Social. De próspera pequena cidade que fora anos antes, Middletown transformou-se num ápice numa cidade quase fantasma.
A globalização, ou concorrência à escala mundial, está baseada num antigo princípio económico, chamado o Princípio da Vantagem Comparativa, formulado pelo economista britânico (de ascendência portuguesa) David Ricardo (1772-1823). Segundo este Princípio, dois países podem beneficiar das trocas entre si se cada um se especializar naquilo em que é comparativamente mais eficiente.
Quer dizer, se a China é relativamente mais eficiente a produzir aço e os EUA chips, ambos os países podem beneficiar se a China se especializar no aço e a os EUA nos chips e depois trocarem entre si (os EUA importando aço da China e a China importando chips dos EUA).
Aquilo a que o Princípio da Vantagem Comparativa não responde é à questão de saber o que fazer às comunidades como Middletown que são devastadas pela importação de aço da China.
Ora é a esta questão que o populismo da Administração Trump vem responder impondo tarifas sobre as importações da China para proteger as comunidades americanas ameaçadas pela concorrência que de lá vem. O valor da comunidade sobrepõe-se ao valor da eficiência económica implícito no Princípio da Vantagem Comparativa. O pensamento concreto envolvendo a protecção de comunidades concretas e pessoas concretas ganha prioridade sobre o pensamento abstracto envolvido no mesmo Princípio.
A Comunidade acima da Economia, o Concreto acima do Abstracto - eis dois grandes pilares que caracterizam a maneira de pensar dos movimentos populistas no mundo.
(Continua acolá)
Sem comentários:
Enviar um comentário