26 abril 2006

anatomia de uma mentalidade

Trinta e dois anos após um golpe de Estado que derrubou uma «ditadura de ferro» que, paradoxalmente, não deu um tiro em sua própria defesa, a mentalidade portuguesa continua rendida a banalidades de salão e de salinha, não ganhou consciência crítica e continua a engolir tudo quanto lhe põem à frente.
Assim, trinta e dois anos depois do 25 de Abril de 1974, afirmar que este golpe de Estado foi feito por gente de boa e de má fé, por gente que estava ao serviço de Portugal e por gente que estava ao serviço de interesses estrangeiros, por gente que serviu o País e por gente que se serviu do País, e dizer que o segundo grupo predominou desde esse dia de Abril até ao dia 25 de Novembro de 1975, que ia lançando o País na guerra civil, que entregou os territórios africanos aos representantes da URSS quando havia outras forças com quem lidar (e que foram vergonhosamente traídas pelas «autoridades» portuguesas), que promoveu nacionalizações vergonhosas, ocupações selvagens, que destruiu empresas, fez saneamentos persecutórios, ocupou jornais e rádios, tentou proibir a liberdade de imprensa e mandar os «fascistas» para o Campo Pequeno, é, hoje em dia, trinta e dois anos depois, crime de lesa-pátria e uma despudorada declaração de «fascismo».###

Diga-se, para que não restem dúvidas, que sempre entendi ter sido António Oliveira Salazar o grande responsável pela forma como foi feita a descolonização portuguesa. Devia ter percebido a tempo e horas que já não vivia no século XIX e que o Concerto das Nações acabara em 1918. Apesar de ter mantido uma política ultramarina que, é bom dizê-lo, vinha dos sectores mais radicais da I República, não teve grandeza suficiente para perceber a História. Como, também, se agarrou despudoradamente ao poder, e não teve dignidade pessoal para regressar à vida civil e deixar o governo antes da natureza e do tempo terem sido obrigados a cumprir a sua missão. Mas já não estou assim tão de acordo quanto às responsabilidades que cabem a Marcello Caetano e aos autores do 25 de Abril, que, note-se, ocorreu seis anos depois da morte política de Salazar. Afirmar, como é moda para a boa higiene das consciências, que o primeiro foi responsável pelo que sucedeu, é desconhecer por inteiro a história desse período tão recente e tão obscuro de Portugal (porque será?) que foram os menos de seis anos decorridos entre a queda do ditador e o dia que hoje se comemora. A descolonização não podia ter sido feita de outra maneira e com outra gente? Mas como, se as soluções encontradas, pelo menos para Angola e Moçambique, geraram, de imediato, guerras civis entre partidos que estavam implantados nesses países? Por que razão, então, entregar o poder, em todas as antigas colónias sem excepção, aos movimentos influenciados pela URSS? Não há aí responsáveis? Foi, também, culpa de Salazar e Caetano? Terá sido responsabilidade de Spínola por usar monocolo e ser vaidoso? Não o conheciam já os «capitães de Abril» quando se colaram à sua figura para legitimar o golpe? Será que sem Spínola estaríamos a comemorar no dia de hoje a efeméride? É certo que, para alguns responsáveis pelo que então aconteceu, Costa Gomes, esse patriota representante de Portugal no insuspeito Conselho Mundial para a Paz, servia melhor os seus interesses. Mas também ele não teve responsabilidades, nem culpa ou sombra de pecado.

É esta «história» que francamente gostaria de ver bem analisada e seriamente explicada. Como, também, não me importaria de ver melhor estudado o período marcelista, essa célebre «ditadura» e esse temível «ditador» que, repito, paradoxalmente não mandou um tiro em defesa do regime. Fossem, ainda hoje, fazer coisa parecida a esse ilustre democrata que é Fidel de Castro e teriam a devida resposta. E, se calhar, por falar em respostas, talvez consigamos perceber a razão dessa nossa amnésia histórica, se analisarmos os percursos de parte substancial da classe política da III República antes do 25 de Abril de 1974, principalmente daqueles que têm mais de sessenta anos. Um dia, quem sabe, talvez se possa fazer imparcialmente a história desse período, como a do que veio a seguir. Sem ressentimentos e sem paixões mas, também, sem pretender atirar areia aos olhos das pessoas. E, sobretudo, sem a proverbial mentalidade portuguesa de bajular quem está em cima e cuspir em quem está em baixo. Mesmo que sejam as mesmas pessoas e o tempo breve. Como sucedeu com Marcello Caetano e com o «bom povo português» no Estádio de Alvalade em 1 de Abril de 1974 e no Carmo vinte e quatro dias depois.

dia da liberdade?

Não vale a pena insistir no óbvio: o 25 de Abril de 1974 não instaurou qualquer regime democrático em Portugal, embora muitos daqueles que participaram na sua realização estivessem genuinamente imbuídos dessa intenção. Mas esses homens de Abril foram afastados alguns meses mais tarde, no 28 de Setembro, por uma camarilha que tentou impor uma ditadura comunista em Portugal e quis evitar que se realizassem eleições democráticas para a Assembleia Constituinte.
Há poucos dias atrás, em conversa com um dos deputados dessa primeira Assembleia democrática portuguesa (que chegou a estar cercada e sequestrada antes de concluir os seus trabalhos), de que mais tarde viria a ser seu presidente, o meu interlocutor afirmou-me uma ideia curiosa: se, naquela altura, existissem empresas de sondagens que tivessem determinado com proximidade os resultados eleitorais de 25 de Abril de 1975 e o humilhante resultado do Partido Comunista Português (12%), as eleições provavelmente não se teriam realizado.
Foi, precisamente, por esta divergência existente entre o «país real» e o país ficcionado pelo Partido Comunista e por Álvaro Cunhal, bem como pela acção de um grupo de militares determinados, apoiados pela maioria esmagadora dos portugueses, que Portugal teve condições para ser um país democrático a partir do 25 de Novembro de 1975.
Eu sei que a História e a memória dos povos se faz de mitos e de símbolos, nem sempre com uma forte aderência à realidade. Querem conservar o 25 de Abril como o «Dia da Liberdade»? Tudo bem. Mas não reescrevam a História, nem contem «histórias» a quem, por essa altura, já cá andava.

o mostrengo

Como era previsível, Ribeiro e Castro terá perdido estrondosamente as eleições para os delegados ao Congresso Extraordinário do CDS. Em toda esta história da sua liderança, há uma coisa que nunca percebeu: ele ganhou o último Congresso menos por mérito próprio (que, indiscutivelmente, o tem), do que pela distração do aparelho do partido, que nunca acreditou nessa possibilidade. Ora, uma distração destas, num partido de pequenos caciques locais como o é o actual CDS, não se repete, como agora se viu.
Quanto ao mais, o CDS desde há muito que não existe, se é que alguma vez teve implantação sociológica real. Os seus melhores resultados eleitorais - logo após o 25 de Abril - foram votos de um eleitorado que transitara do regime anterior. Depois, quando o regime saído de Abril estabilizou, o CDS entregou-se à sua insignificância real: em cada eleição foi perdendo votos, eleitores, autarquias, em suma, poder. O fim da AD, o Bloco Central e a década de Cavaco levaram o partido à célebre dimensão do taxi. As suas figuras mais carismáticas foram desaparecendo ou transitando para o PSD (Lucas Pires, José Gama, Vieira de Carvalho, etc.) e para o PS (Rui Pena, Jorge Goes, Luís Beiroco e, agora, Freitas do Amaral). Até que o fim do cavaquismo e um mediático Monteiro renovaram a esperança. Mas, de imediato, conquistados uns reduzidos 8,9% de votos na legislativas, logo o «partido» se começou a dilacerar em questiúnculas internas de pequenos poderes e míseras ambições, o que levou Paulo Portas a afirmar que o «CDS não tem emenda». Com ele, de resto, o mais mediático e inteligente de todos os seus líderes, o CDS foi para o governo, mas manteve a fasquia dos 8%, da qual não se consegue separar.
Hoje, sem cabeças mediáticas, com Sócrates no governo por quatro anos e Cavaco (cujo amor pelo «outro partido» é bíblico) em Belém durante dez anos, o CDS está reduzido a meia dúzia de sedes bafientas e a alguns «históricos» de um aparelho de caciques, que defendem à dentada os pequenos poderes (e empregos) que ainda lhes vão caindo do céu democrata-cristão. Não tem ideologia, programa ou princípios. Tanto vemos os seus responsáveis a falar em reformas do Estado, como logo em seguida os vemos a defender o Serviço Nacional de Saúde e a contratação de 1600 funcionários para a Câmara de Lisboa.
Hoje, sem Portas, sem Monteiro, sem Xavier (cautelosamente ao largo) e, agora, sem Ribeiro e Castro, o CDS é um mostrengo sem cabeça. Se Ribeiro e Castro não o deixar entregue a si próprio e à sua eterna irresponsabilidade, se aceitar continuar a dirigir um partido que verdadeiramente nunca liderou, irá prestar-se a um desgaste e a sucessivas faltas de respeito e de consideração que, por enquanto, não merece.

o fim hardcore de um partido sexy

O José Mexia amofinou-se comigo aí há uns dias, porque achou que eu falara do CDS em «tom de desdém». O José Mexia tem uma certa razão e eu próprio já me ando a incomodar por escrever excessivamente sobre um tema que merece cada vez menos atenção.
Há pouco, porém, ouvi na TSF que nas eleições para os delegados ao Congresso que hoje decorrem, houve zaragata da grossa numa secção qualquer de Oeiras. Segundo percebi, o Presidente do partido e um militante qualquer envolveram-se numa rixa brava, que acabou com a urna partida (talvez na cabeça de um dos dois) e com a intervenção da PSP para, perdoem-me o plebeísmo, pôr «ordem na tasca».
Escuso de lhe dizer, caro José Mexia, a sensação que isto provoca num partido que se diz de direita, democrata-cristão, aberto a conservadores e a liberais. Nem nos tempos do malfadado PREC me consigo lembrar de um episódio semelhante: um Presidente de um partido ser agredido (não sei se física ou apenas verbalmente) por um militante do próprio partido, durante um acto eleitoral interno. É uma vergonha, uma lástima e a confirmação de que o CDS está desde há muito entregue a garotos (não no sentido etário, entenda-se).
Não sou eu, caro José Mexia, quem trata o CDS com desdém. É o CDS que, de há muito a esta parte, nos desconsidera a todos: militantes, simpatizantes e aos portugueses em geral. O fim de tudo isto, não duvide, não vai ser bonito de assistir.

Eu, pecador, me confesso: fui hoje, a pedido muito especial de um velho amigo, votar nessas eleições no concelho do Porto. Não comento o ambiente que encontrei nos escassos minutos que estive na sede, onde já não entrava há muitos anos, porque não quero ser desagradável. Contudo, não posso deixar de assumir aqui o compromisso público de que não me voltarão a ver por lá. O que, por certo, será uma alegria para quase toda a gente que ainda por lá anda.

No noticiário das 23.00, a TSF actualizou a informação e, afinal, a zaragata não foi com o Presidente do partido, mas com o Presidente da mesa de voto. Mea culpa. O «post», contudo fica como está. O sentido permanece o mesmo. Onde se lê «o Presidente do partido», passe a ler-se «o Presidente da mesa». O resto é tudo igual.

a união europeia acabou?

Subitamente, o coro de preocupações e de protestos contra a União Europeia desapareceu. Parece que foi suficiente pôr-se na gaveta o famoso Tratado Constitucional para que deixassem de fazer sentido os cuidados esmerados dos nossos anti-constitucionais com a tão querida «soberania» nacional. Depreende-se, assim, que acabaram as deliberações por maioria qualificada no Conselho, que esta instituição e o Parlamento Europeu não tomam frequentemente decisões que afectam as nossas vidas, que a Comissão não interfere no nosso dia-a-dia, que o Banco Central Europeu já não manda na moeda e que, obviamente, os princípios do primado e do efeito útil e directo do direito comunitário não sobreviveram à derrocada da Constituição. O próprio artigo 308º do Tratado da Comunidade Europeia (o célebre artigo da extensão dos poderes comunitários por deliberação do Conselho) também deve ter sido revogado. A Carta dos Direitos Fundamentais da EU há-de ter-se esfumado. Mais: a não ratificação da Constituição Comunitária, esse opaco, extenso e ilegível documento, permitiu a manutenção de uma situação normativa clara e linear na vida da União. Os procedimentos legislativos, os poderes das instituições comunitárias, a divisão de matérias da responsabilidade exclusiva e concorrente da União e dos Estados permanecem, também, lineares: como se ouve frequentemente dizer, basta consultar o Tratado de Nice que deve lá estar tudo?
Muito francamente, gostava que me dissessem se isto é, de facto, assim, e se podemos continuar a dormir tranquilos, sem receios pela sobrevivência da nossa querida soberania nacional. E lançava um desafio de esclarecimento a dois meus queridos amigos e colegas de blog, o CAA e o Gabriel, em tempos tão militantemente empenhados contra o Tratado Constitucional. O desafio, porém, é extensivo a tutti quanti se interessem por estas coisas e tenham, em tempo devido, marcado a sua posição contra o malfadado Tratado.


TRÉPLICA AO CAA

O ponto, caro CAA, não é propriamente o «ou este tratado ou o caos», mas outro muito simples: o que está no TC é a soma da manta de retalhos do direito comunitário primário em vigor. A saber: o Tratado da União Europeia (Parte I), a Carta dos Direitos Fundamentais da UE (Parte II) e o Tratado da Comunidade Europeia (Parte III). Sem dúvida com modificações, como sempre sucedeu desde 1957, quando são aprovados tratados de revisão (concretamente, o Acto Único Europeu, o Tratado da União Europeia, o Tratado de Amesterdão e o Tratado de Nice). Do ponto de vista soberanista há alterações muito importantes: a consagração do direito de secessão e a determinação clara das regras de votação e dos procedimentos legislativos, por exemplo. A este propósito, a quem se acha confortável com o actual status quo, faço sempre a mesma pergunta: sabem dizer-me como se vota no Conselho de Ministros? E onde - em que tratados ou outros instrumentos legais - se encontram essas normas, fundamentalíssimas no direito constitucional da União? Têm a noção do que é o artigo 308º TCE e como pode e foi usado, por exemplo, para desenvolver a componente social da UE, a partir sobretudo de Amesterdão? Por último, quanto à eterna necessidade de uma «nova Europa», essa vacuidade formal que nunca foi explicada, mais uma questão, que costumo designar pelo «dilema do caramelo»: estão dispostos a voltar a mostrar o passaporte e o bilhete de identidade a um soldado da GNR, para irem comprar caramelos a Badajoz? Pensem bem no assunto.

PS: aos leitores que consideraram seriamente as minhas declarações de amor à «soberania» nacional (cuidadosamente colocada entre comas), uma advertência: era uma ironia. Está visto que tenho de ser mais explícito no meu péssimo sentido de humor.

19 abril 2006

pedro arroja

Tive o privilégio de conhecer o Prof. Pedro Arroja há quase vinte anos atrás, no seu regresso dos EUA onde se acabara de doutorar.Na altura, já me considerava um liberal e, graças a Orlando Vitorino e a alguns amigos comuns, conhecia razoavelmente alguns dos autores que marcaram o liberalismo do século XX, principalmente Hayek e Mises, da Escola Austríaca, e Milton Friedman, da Escola de Chicago Lera um pouco de Popper (a inevitável «Sociedade Aberta»), e Henri Lepage e Guy Sorman, os divulgadores liberais mais populares dessa época. Entusiasmei-me com o «Figaro Magazine» de Louis Pauwels, um velho e insuspeito conhecido dos remotos tempos do «Le Matin des Magiciens» e exaltei-me com a «Revolução Conservadora» de Reagan e Thatcher.
Porém, ser nesse tempo liberal - deste liberalismo - em Portugal, não tinha qualquer significado. Correspondia, na melhor das hipóteses, a não se ser coisa alguma. Do «liberalismo» dizia-se apenas que era a filosofia da Revolução Francesa, que inspirara a política portuguesa do século XIX, a partir de D. Pedro e do constitucionalismo monárquico que marcou essa centúria após 34. À esquerda, o «liberalismo» era considerado uma filosofia económica ultrapassada, situada nos idos do século XVIII, e cujos resquícios tinham sido competentemente varridos para debaixo dos tapetes das democracias ocidentais com o crash de 29. Coisa morta e enterrada, portanto. À direita, o liberalismo tinha péssima reputação: coisa de carbonários e jacobinos que queriam «enforcar o último dos reis, com as tripas do último dos papas», e que tinham destruído a pátria com as suas querelas parlamentares na I República. A direita portuguesa estava, nessa altura e como sempre, à procura de um pater familae que a domesticasse, exercício a que se dedica desde tempos imemoriais com esmero e perseverança. Nas Universidades, do liberalismo diziam-se banalidades e lugares comuns. Em regra, era matéria tratada na parte histórica das poucas disciplinas que o consideravam, invulgarmente sob a vulgarização acima descrita, com ligeiras variações consoante o «mestre» fosse de esquerda ou de direita.

Até que apareceu Pedro Arroja e as coisas começaram a mudar. Arroja escreveu nos jornais, apareceu nas televisões, fez conferências, editou livros e deu aulas. Como não poderia deixar de ser em Portugal, as primeiras reacções à personagem foram de alguma bonomia: o homem parecia divertido, até mesmo um pouco exótico, escrevia bem e falava melhor. Defendia umas bizantinisses que ninguém levava muito a sério e, por isso mesmo, não tinham importância. Até que Arroja começou a escrever e a falar para além do que a nossa proverbial tolerância admite. Começou a formar alguns discípulos e, coisa grave, o que dizia parecia agradar amplamente à opinião pública. De facto, Arroja conseguia aliar a simplicidade discursiva à complexidade dos argumentos. Tinha uma fantástica capacidade retórica e desarmava com fundamentos elementares e dificilmente refutáveis os contra-argumentos que se lhe opunham. Arroja, a partir daí, passou a ser visto com outros olhos e a inteligentzia lusa tratou de o rotular como um alucinado e um irrealista. Não era, pois, para levar a sério: faltava-lhe a gravitas do célebre Conselheiro Gama Torres, paradigma da superioridade intelectual portuguesa. De facto, também para Arroja, como para Gama Torres, existiam «questões terríveis». Só que não eram «o pauperismo e a prostituição», nem tinham as «soluções» tradicionais da política portuguesa.
Vinte anos mais tarde, muitos dos argumentos que Arroja empregou estão por aí, à solta, um pouco por todo o lado. Os jornais reproduzem-nos, os blogues divulgam-nos e aprofundam-nos, os comentadores e os políticos, na sua forma por vezes tosca e rudimentar, utilizam-nos. Vinte anos após, o liberalismo é do conhecimento geral e parece ser levado a sério, ainda que muitas vezes criticado com os mesmíssimos argumentos de há vinte anos atrás. Muito do que até hoje foi conseguido no arejamento das ideias e das mentalidades, para bem da nossa consciência colectiva, é devido a Pedro Arroja. Ainda recentemente, um ilustre amigo socialista referia, embora realçando as diferenças, que Pedro Arroja tinha razão em muito do que dizia e lamentava o seu «desaparecimento».
Na verdade, no seu mais do que elementar direito de fazer da sua vida o que muito bem entendesse, Pedro Arroja decidiu enveredar pela vida empresarial, onde tem sido particularmente bem sucedido, e abandonar a intervenção pública. É pena. A sua contribuição, nesta altura em que o liberalismo parece estar definitivamente na ordem do dia, podia ser decisiva para lhe dar uma coerência que, apesar de tudo, ainda lhe continua a faltar. Bem poderia ser a «pequena» diferença que faria uma diferença enorme.

18 abril 2006

líderes

O Dr. Ribeiro e Castro perdeu já a conta ao número de candidatos a líderes que terá que enfrentar no próximo extraordinário Congresso Extraordinário do CDS. Compreensivelmente, a um tipo que tenha chegado aos trinta e que ainda ande pelo CDS, não lhe resta alternativa senão ambicionar chefiar o partido onde nasceu para a política e alguns até mesmo para a vida. Depois, há outros factores: a mulher lá em casa («Josué, chegou a tua hora! Não te deixes amesquinhar! Ficas sempre em último em tudo onde vais!»), os colegas do escritório («Ó Tóni, não és homem e não és nada, se não te vais àquilo!»), as amigas e conhecidas («Não te julgava capaz de te cortares, Joaquim! Na intimidade não falas assim.»), ao patrão («Ó Marcelino, ó você aparece este fim-de-semana na TV a discursar às massas, ou bem pode ir arrumando a secretária!»). Enfim, um sem mundo de estímulos à vocação de liderança de qualquer democrata-cristão que se preze.
Depois, há ainda a regra que a Comissão Directiva introduziu de indexar uma carantonha a cada uma das moções de estratégia a concurso. A ideia é disparatada. Já se sabe que as moções dos congressos partidários são tratados de reflexão política, prenhes de ideias e informação, que fogem à lógica aparelhística do «meter nojo no Congresso e eleger uns gajos para o Conselho Nacional». São, pelo contrário, contributos importantes para a vida de qualquer partido e do país, que, de resto, as direcções em vigência muito apreciam. Mas a ideia é ainda mais absurda, por pecar por escassa. Dadas as circunstâncias, o que convinha ao CDS era que cada Congressista fosse, ele mesmo, um candidato formal a líder do partido. De outro modo, há talentos que podem ficar injustamente excluídos. Veja-se, por exemplo, o caso de Ribeiro e Castro: no último Congresso nem moção apresentou, não tinha cargos na Direcção e saiu de lá eleito presidente.
Decididamente, a modéstia foi sempre um dos males da pátria.

mickey's revenge

No meio de uma trepidante excitação, o CDS prepara o seu próximo extraordinário Congresso Extraordinário e, à medida que a data se aproxima, as revelações são mais que muitas: o regresso de Nogueira de Brito e Cruz Vilaça, a serena tranquilidade de Maria José Nogueira Pinto que, pela enésima vez, anunciou que não será candidata, o silêncio de Portas, o afastamento crítico de António Lobo Xavier da Direcção que ajudou a eleger e o ruído habitual da «juventude» do partido. Some-se, a este exaltante panorama, algumas «bocas» de Rosado Fernandes contra o anterior líder, na tradição do que fizera já em relação a Monteiro e Freitas, e de que, ao que julgo, escapou Lucas Pires por se ter refugiado, em tempo, no PSD. Quanto a ideias, projectos, planos, em suma, novidades que possam interessar ao país e aos eleitores, o CDS continua sem dizer nada. A única coisa digna de nota foi, na semana que passou, o anúncio que o CDS quer preservar o sistema público de saúde e, presume-se, a generalidade do Estado Social em que vivemos. Nada de que tivéssemos até agora suspeitado, sobretudo pelo decurso sua recente actuação governativa.
Ao fim de trinta e dois anos de regime democrático, o CDS continua o que sempre foi: um partido «limpinho», precocemente envelhecido, que aprecia o imobilismo e detesta o risco, respeitador das autoridades estabelecidas e a estabelecer. Glosando o que, em tempos, alguém disse, há mais vida e animação numa prancha de banda desenhada do rato Mickey, do que nesta triste agremiação de medianas celebridades.

16 abril 2006

democracia: 12 tópicos

1. A democracia é mais, muito mais, do que um simples procedimento de escolha e selecção de governantes. È, também, um valor político e moral, porque pressupõe que todos os cidadãos de uma comunidade podem participar activa ou passivamente, de forma igualitária, nessa escolha.

2. A democracia tem, igualmente, um valor histórico inquestionável. Em seu nome e por sua causa bateram-se gerações inteiras: primeiro, pela introdução do sufrágio conducente à eleição das primeiras assembleias de representação restrita, logo a seguir, pelo seu progressivo alargamento, até ter atingido o universo dos cidadãos maiores e civilmente responsáveis.

3. A democracia possui muitas outras virtudes. Entre elas, a possibilidade de uma comunidade eleger pacificamente os seus representantes e afastar aqueles que governam sem turbulência. Nessa medida, ela é uma sofisticada forma de comportamento social ritualizado, progressivamente sedimentada ao longo dos anos por gerações compostas por centenas de milhares de indivíduos. Deve, por conseguinte, ser merecedora do nosso respeito e da nossa protecção.

4. Apesar dos seus múltiplos enunciados, a que já os clássicos se dedicavam, na sua formulação contemporânea, a democracia tem o seu ex-libris na regra de «um homem, um voto». Onde não vigore este postulado, ele mesmo um valor democrático estruturante, não se aceita a existência da democracia.

5. Se sem democracia não existirá nunca liberdade, a liberdade não está, contudo, garantida pela existência da democracia. Como em seguida se tentará demonstrar, a própria exaltação racionalista do ideal democrático poderá ser um perigo fatal para a ideia da liberdade.

6. Em primeiro lugar, porque o que garante a liberdade não é tanto a forma de designação dos governantes, mas os poderes e o uso que eles desempenharão e que darão às suas funções. Pode-se, com verdade, alegar que onde exista democracia, quem fizer mau uso dos seus poderes poderá ser afastado. Porém, se isto poderia ser suficiente há cem anos atrás para assegurar a liberdade, poderá não chegar para a garantir nas sociedades complexas em que hoje vivemos.

7. De facto, é o uso do poder que determina a subsistência da liberdade, entendida esta no sentido liberal clássico na livre expressão de ideias e sentimentos, na segurança da vida em sociedade, na possibilidade de cada um poder dispor daquilo que é seu e, em suma, na propriedade plena de si mesmo e do que adquiriu legitimamente. Chame-se a este núcleo fundamental de direitos os «direitos fundamentais» ou outra qualquer coisa, é por esta razão que o contrato social instituidor da sociedade política foi feito e justifica manter-se.

8. Nem todas as sociedades onde vigora a eleição democrática dos governantes são compostas por homens livres. Em Roma, durante a fase da República, os magistrados eram anualmente eleitos e substituídos pelos cidadãos romanos, que dispunham já nessa altura do ius sufragii e do ius honorum. A Roma clássica não era, porém, uma sociedade de homens livres. Adolf Hitler foi eleito por uma razoável maioria de votos livremente expressos. A sociedade que o elegeu e que ele governou não era composta por homens livres e mesmo a parcela de liberdade que existia ao tempo da sua eleição para o cargo de Chanceler do Reich acabou por rapidamente desaparecer. Salvador Allende foi eleito democraticamente. O uso que deu ao poder que recebeu foi o da destruição das liberdades. Pinochet, que lhe sucedeu por meios violentos, acabou com o resto que sobrava embora, involuntariamente, tenha mais tarde permitido o regresso da democracia ao país.

9. A convicção de que o poder sufragado pelo voto universal legitima o seu uso irrestrito, porque está democraticamente fundamentado e será responsabilizado politicamente no fim do mandato, é o mais grave atentado dos nossos dias à liberdade. Sem que nos apercebamos, o governo põe e dispõe da nossa propriedade sem que à sua actuação sejam impostos entraves ou limites sérios. Pelo contrário, a invocação do «interesse público» por parte de quem governa, legitimando essa interpretação pelo voto popular, permite os mais graves atentados à propriedade, o mesmo é dizer, à liberdade.

10. Com base nestes pressupostos, as sociedades contemporâneas contribuem, em média, com mais de metade da sua produção anual para a despesa pública, sem contrapartidas proporcionais ou, tão pouco, que tenham sido avocadas pelo Estado a pedido, ou com expresso mandato, dos governados. Alteram-se os códigos, as leis, as normas de direito conforme a soberana vontade de quem governa e à exacta medida das suas necessidades e intenções. O direito não é estável, porque não corresponde a valores estruturantes da sociedade e dos indivíduos, como deveria suceder. Continuamos, como em Roma e no Absolutismo, a aceitar que a «lei é a vontade do príncipe» (do soberano) e não o conjunto de regras que vão evoluindo e que os próprios cidadãos foram elaborando ao longo do tempo, tendo em vista estabelecerem uma vida social pacífica e proveitosa.

11. Uma sociedade liberal deve aceitar a democracia como um, porventura o mais significativo, entrave ao expansionismo do poder público. Não deve aceitá-la como justificação para tudo o que os governos pretendem, menos ainda julgar que ela é bastante e suficiente para garantir a liberdade.

12. O fascínio pelas regras formais da democracia e a absoluta rendição aos poderes que ela ciclicamente legitima, poderá transformar-se no embrião de um novo totalitarismo.

iznogoud

A coisa afinal é bem pior do que se julgava: a rapaziada do Irão, liderada por um sujeito franzino, com ar de débil mental recalcado, a fazer lembrar o célebre Iznogoud de Goscinny, tem urânio enriquecido e poderá juntar-se brevemente ao selecto «clube nuclear». Por ora, a utilidade do avançado material não passa a de um potente combustível. Provavelmente, para dar gás à revolução islâmica. Isto mesmo foi hoje comunicado pelo famigerado Mahmud Ahmadinejad, o referido presidente do Irão, a uma assistência composta por padres, guardas da revolução e mulheres embrulhadas em xailes, e, obviamente, a um mundo apanhado de surpresa.
Numa altura em que o ocidente europeu se entretinha a debater o direito do Irão aceder ou não ao nuclear e as boas ou más intenções dos seus governantes, o antigo guarda da revolução não se ficou pelos ajustes e anunciou que já lá está. Doravante, as consequências são imprevisíveis, e o Ocidente tolerante e anti-americano bem pode começar a fazer as contas à vida. Mais uma vez, como é da sua tradição, continuará a agachar-se até se lhe ver os fundilhos das calças.
Mas, já quanto às causas, não restam dúvidas: foi Bush o culpado! Ou não terá sido ele quem, ao invadir o Iraque, destruiu a geopolítica do Médio Oriente, permitindo o crescimento do Irão? Ou não foi ele também que, ao apoiar cegamente a ditadura terrorista de Israel, acirrou os ódios locais? Na nova «moral» internacional, não existe moral, nem responsabilidade individual. A culpa é sempre do Bush que, naturalmente, é uma espécie de mordomo dos romances da Agatha Christie: é o primeiro suspeito e sempre o culpado.
Se, por um destes dias, o Irão construir a bomba nuclear e semear por aí umas tantas, a culpa é de Bush: porque foi causa e consequência, porque não invadiu, ou porque invadiu e não devia ter invadido, porque invadiu cedo ou tarde de mais. Do Ahmadinejad e daquele selecto grupo perante quem hoje discursou é que não será certamente. É tudo gente bem formada, pacífica e cheia de amor ao próximo. A política internacional é uma coisa maravilhosa!

amici miei!

Prodi ganhou a Câmara dos Deputados, ao que consta, por uma décima (20.000 votos de diferença). No Senado, porém, Silvio soma mais um deputado que Romano. Os partidos da coligação de direita querem recontar alguns círculos eleitorais. Desconfiam de «chapelada» e prometem remeter a coisa para os tribunais competentes se, como se espera, o resultado não lhes agradar. Prodi, já auto-proclamado primeiro-ministro, promete um governo para unificar a Itália (que nunca se entusiasmou com unificações), e que ele, na sua cirúrgica visão, acha que está dividida. Ainda sem conhecer os resultados finais, Berlusconi garantiu aos italianos que, fossem quais fossem, o país será governado em instabilidade.
É o regresso da Itália às suas melhores tradições políticas, que permitiram que a sociedade civil se fosse desenvolvendo à margem de uma classe política empenhada em devorar-se a si mesma, e que fizeram da sua economia uma das mais desenvolvidas do mundo. O povo italiano está de parabéns.

avé césar


O Prof. César das Neves acha que não existe um choque de religiões. O Prof. César das Neves afirma que a Europa está decadente. O Prof. César das Neves atribui essa «desgraça» ao relativismo ético do ateísmo. O Prof. César das Neves diz que os males do ateísmo são infinitamente superiores aos do terrorismo. O Prof. César das Neves invectiva, de dedinho espetado no ar e de olhar esgazeado, o ateísmo abortista e responsabiliza-o pelos males do mundo. Os católicos (as católicas), eivados de moral cristã e embebidos pela ética da Igreja, não fazem abortos. Não vão a Espanha nem recorrem a parteiras de vão de escada. Quando engravidam lançam os olhos ao Céu e agradecem com alegria a benesse recebida.Os termos do debate sobre «a vida» e o «aborto» assim colocados, só contribuem para a diminuição das posições daqueles que preferem e defendem a primeira sobre o segundo. O Prof. César das Neves diz que a Europa anda «confusa». Ele é, de resto, a prova viva disso e, também, da imensa estupidez com que certa «Igreja» fala dos males do mundo.

06 abril 2006

uma constituição para a eternidade

A constituição política de uma comunidade (evitamos, intencionalmente, o termo «Estado», visto existirem exemplos de Constituições políticas que o transcendem) é o seu estatuto fundamental, pelo qual se rege a organização política e no qual se enunciam os direitos fundamentais que o poder deve assegurar. Trata-se, portanto, do contrato estabelecido entre a comunidade e o poder político, onde se encontram as normas do «pactum societatis» que obriga as partes, e os princípios metapolíticos em que se fundamentam.
Sendo, assim, um documento estruturante fundamental da sociedade, ele deve representar o máximo denominador comum entre os seus membros, os que estão vivos, os que já morreram e os que hão-de nascer, devendo fundar-se numa tradição consolidada, em vez de ser fruto de repentismos revolucionários e fractais.
Por uma regra de puro bom senso, uma Constituição política não deve ultrapassar os limites do essencial: a estruturação do poder, as funções que deve cumprir, os limites que tem de respeitar e os direitos individuais fundamentais que nunca poderá pôr em causa.

No século XIX, quando o movimento constitucional eclodiu em grande escala, após as duas primeiras Constituições escritas dignas desse nome (a americana de 1787 e a francesa de 1791), o constitucionalismo era visto, e bem, como uma forma de limitar o poder. Nessa altura, como lembra Hayek no The Constitution of Liberty, Constituição era sinónimo de poder limitado. Esta limitação fazia-se de duas maneiras evidentes: a separação de poderes e funções entre os órgãos de soberania, e o reconhecimento dos direitos fundamentais de propriedade e liberdade. A participação política, embora reservada à burguesia e aos contribuintes, foi consagrada e evoluiu no sentido de alargar a democracia burguesa predominante no século XIX, para a democracia representativa universal da centúria seguinte.

Nestes termos e com estas funções, parece óbvio que o papel das Constituições não deve ser alargado, de modo a quase transformar-se num programa político partidário. Contudo, foi isso que sucedeu, precisamente a partir da Constituição de Weimar de 1819, que consagrou o primeiro modelo de Constituição social europeia moderna.
A partir daqui, a Constituição contemplou direitos «fundamentais» de segunda e terceira geração, passou a programar a vida das comunidades a que se destina, desenvolveu subsistemas constitucionais a que geralmente se dão os nomes de «Constituição Económica», «Constituição Social», «Constituição Laboral», em suma, passou a programar em vez de organizar.
O Estado, por esta via, ampliou substancialmente os seus domínios de ingerência no tecido social, passando a «garantir» emprego, saúde, habitação, educação, ambiente, celeridade administrativa e muitos outros doravante considerados «direitos fundamentais». Enunciou, também, os limites a que a propriedade e a liberdade passam a ter de obedecer, no primeiro caso, todos quantos sejam necessários ao cumprimento das funções sociais do Estado (interpretadas e executadas, momento a momento, por quem governa), e, no segundo, impondo sérios limites ao acesso ao rendimento e à conservação da propriedade individual. A Constituição passou a ser, assim, mais do que um instrumento de limitação do poder político e de consolidação da identidade comunitária, um meio ao serviço daquele poder tendo em vista conter a liberdade individual e societária, transformando-se num factor de divisão e não de união.

Quando a Constituição que instaurou a III República portuguesa foi promulgada há trinta anos, em 2 de Abril de 1976, o documento que estruturou politicamente a nossa comunidade foi, naturalmente, deste último tipo. Diziam, ao tempo, aqueles que se entusiasmavam com ela, que o seu conteúdo era «dos mais avançados do mundo», senão até o mais evoluído, por se ter preocupado em definir um vastíssimo elenco de direitos fundamentais sociais, por limitar seriamente a propriedade privada, tolerando-a em relação às propriedades pública e cooperativa, por afirmar os valores políticos do socialismo como fim societário. Obviamente que este texto era, mesmo à luz daqueles tempos aziagos, vergonhoso, dogmático, intolerante e totalitário.

A evolução das coisas permitiu que a Constituição fosse, ela própria, melhorando e perdendo alguns dos seus mais abomináveis tiques. Mas, como o cuidado com a criança era imenso, foi-se mexendo nela com muita cautela, defendendo Jorge Miranda, um dos pais do repolho, que em sede de revisão constitucional, o poder soberano só poderia tocar-lhe nalguns aspectos fundamentais por via de uma «dupla revisão», isto é, primeiro alterando algumas normas que limitavam os poderes de revisão e, depois, alterando as partes que o legislador constituinte permitira no texto original. A criança era sensível e podia-se constipar. Todo o cuidado com o trambolho não era demais.

Quer isto dizer que a Assembleia Constituinte de 1975 arrogou-se no direito de impor o seu modelo de organização e ideologia política aos portugueses do seu tempo e aos vindouros. De tal modo, que por lá deixou um artigo, actualmente o 288º (limites materiais da revisão), que proíbe definitivamente a alteração de um conjunto de postulados arvorados em traves mestras do novo regime. Entre os mais repugnantes e totalitários são de realçar: a forma republicana de governo (al. b); Os direitos dos trabalhadores, das comissões de trabalhadores e das associações sindicais (al. e); a coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção (al. f); a existência de planos económicos no âmbito de uma economia mista (al. g); o sufrágio universal, directo, secreto e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local, bem como o sistema de representação proporcional (al. h).

O primeiro destes limites considera a monarquia como uma forma não democrática de exercício do poder, conceito obviamente ultrapassado, no mundo ocidental e em Portugal, pelo menos, desde 1834. O segundo tem servido para manter uma legislação laboral caduca, ultrapassada e que é um dos principais motivos que justificam o subdesenvolvimento português. O terceiro impõe-nos a propriedade pública e cooperativa, queiramos ou não mantê-las. A quarta remete-nos para a planificação económica estadual. E a última inibe, de facto, modificações substanciais do nosso sistema eleitoral, proibindo que se toque nessa «vaca sagrada» do método de Hondt, encontrado, ao tempo, como forma de garantir a representatividade dos pequenos partidos, em especial, do Partido Comunista.

Ora, com todos estes espartilhos e tendo o legislador constituinte feito coincidir a revisão destas normas com a subsistência do regime, isso significa que só é possível modificá-la declarando o fim da III República. Como se pode fazer isso por meios pacíficos, ainda não se descobriu. Mas que já é mais do que tempo de reassumirmos, sem limitações, o poder constituinte soberano, também parece óbvio. Entretanto, a «peça» constitucional que nos foi legada em 1976, continua a impor sérias restrições à nossa liberdade e aos nossos direitos fundamentais, nomeadamente o direito e a liberdade de a não querermos.

Hitler queria legar-nos um Reich para mil anos. Os constituintes de 1976 deixaram-nos uma Constituição para a eternidade.

04 abril 2006

o equívoco fatal


A «Pública» de hoje (link indisponível), à semelhança de outros jornais e revistas portuguesas nas últimas semanas, incluí uma reportagem sobre a agitação que se vive em França, em torno do denominado «contrato de primeiro emprego» e a sobrevivência do Estado Social.
No essencial, o que as pessoas pedem - principalmente os jovens - é mais protecção por parte do Estado e garantias quanto ao futuro das suas carreiras e dos postos de trabalho que esperam vir a ocupar.
Existe nisto um enorme e trágico equívoco, tão trágico quanto a falta de noção de que o que é pedido é precisamente o que originou o elevado índice de desemprego e a abundância de trabalho de fraca qualidade e mal remunerado, de que as sociedades europeias padecem.
Na verdade, a escassez de trabalho não significa outra coisa que não escassez de recursos e de riqueza. Quando esta não existe numa sociedade, não há emprego: porque não pode haver investimento (ou há pouco), e porque é impossível remunerar trabalho sem que haja recursos. Assim, o que os manifestantes exigem - em França e um pouco por toda a Europa - é que o Estado lhes ofereça o que não tem para dar, não pode e não deve dar: o dinheiro que não tem e a riqueza que não produz.

Os socialistas e, em geral, os defensores do intervencionismo, andaram décadas a convencer-nos que o Estado podia estimular o crescimento económico criando a ficção do optimismo e desvirtuando o funcionamento natural do mercado, com auxílios directo e indirectos às empresas, com a criação de empregos na administração pública, o lançamento de «investimentos públicos produtivos» e com taxas de juro artificialmente baixas.
Porém, como o demonstra a situação actual das nossas sociedades vítimas dessas políticas, é exactamente o inverso que resultou delas: o Estado não gera riqueza, e a «riqueza» que cria por via indirecta, com as medidas de intervenção «correctoras» das célebres «injustiças do mercado», não é real. Logo, mais tarde ou mais cedo, essa falsa prosperidade não apenas se desvanece, como a sua criação artificial (com custos elevados e para satisfazer «necessidades» inexistentes) comportará consequências sociais graves. Nomeadamente, as que decorrem de terem sido mantidas em postos de trabalho desnecessários e não produtivos, pessoas que poderiam estar, de facto, a trabalhar e produzir noutros lugares.

Qual é, então, a maneira das nossas sociedades aumentarem os níveis de emprego e, como pretendem os manifestantes, «garantirem o seu futuro»? A resposta poderá não ser tão complexa quanto se julga: gerando riqueza e, sobretudo, permitindo que ela possa ser acumulada para investimento por quem a cria, em vez de ser disseminada para pagar a dívida pública. Esta, em vez de continuar a devorar os rendimentos de quem efectivamente os produz, que seja paga pelos activos que os Estados detêm: as empresas públicas, os imóveis, as reservas e as aplicações financeiras, etc. Por outras palavras: o Estado que se responsabilize e pague com o que é seu aquilo que gasta. De outra maneira, e enquanto os cidadãos não conseguirem acumular as mais valias do seu trabalho, não poderão investir aquilo que não têm.

Numa economia de mercado livre baseada no lucro, quem ganha investe e quem não investe não ganha. Não é, por conseguinte, a proteger o que não há ? o emprego se não existirem empresas que necessitem de trabalhadores, o trabalho se não houver trabalho para fazer, os salários se não se tiver dinheiro para distribuir ? que se resolverão os nossos problemas.
Numa sociedade capitalista onde quem produz e trabalha pode acumular as mais valias que resultam do seu esforço, são os próprios empresários e empregadores que garantem o emprego. Nenhum patrão despede se precisar de mais trabalho para produzir mais, vender mais e lucrar mais. Mas, se não tiver trabalho e não o terá se não acumular riqueza, não poderá fazer outra coisa senão despedir aqueles a quem não pode pagar.

O keynesianismo, que entorpeceu a Europa ocidental no século XX com promessas do pleno emprego garantido pelo Estado, adormeceu as nossas sociedades, desresponsabilizou os indivíduos, empobreceu os países, as economias nacionais e as empresas privadas, criou e instalou verdadeiras plutocracias políticas e burocráticas, e gerou desemprego e miséria, em vez de emprego e prosperidade Os cidadão europeus devem exigir menos Estado, mais desregulamentação e menos proteccionismo, e não o contrário. De outro modo, só veremos agravar a situação actual.

03 abril 2006

masterplan

A história é de compreensão simples, elementar até, e qualquer indigente mental será capaz de a perceber: existe uma conspiração mundial para implantar o capitalismo universal, e dizimar o modelo social europeu e os direitos sociais arduamente conquistados e solidamente conservados ao longo das últimas décadas. O vértice deste masterplan filo-capitalista situa-se na administração norte-americana (Bush, sempre ele!), e na sua expressão conspirativa transnacional (o capital não tem pátria) chegou a França através do «contrato de primeiro emprego», ao qual as forças sociais estão a dar na rua a resposta devida. Em Portugal, os tentáculos do polvo estão, desde Março, no Palácio de Belém e a conspiração goza dos evidentes favores de publicistas como José Manuel Fernandes e Helena Matos, respectivamente Director e colunista do jornal «Público». Presumivelmente outro covil de conspiradores, propriedade do capitalista Belmiro, um dos principais responsáveis pelo desemprego nacional.
Esta preclara e lúcida denúncia dos perigos que se iminenciam tombar sobre as nossas desprotegidas cabeças, foi ontem mesmo feita pelo dr. João Teixeira Lopes, dirigente do Bloco de Esquerda, ilustre deputado da República, candidato à Câmara do Porto nas últimas eleições, e um valor sólido da política nacional. Curiosamente, a forma que lhe foi dada foi um artigo no mesmíssimo «Público» («A França aqui tão perto», link directo indisponível), o jornal da hiperbólica conspiração.
Não fosse o velho ditado que sempre me garantiu que ainda que eu seja paranóico, nada garante que não haja uma conspiração mundial contra mim, e julgaria que tinha endoidecido ou estupidificado de vez. Assim, de duas uma: ou a conspiração existe mesmo ou o Teixeira Lopes anda a gozar connosco.

02 abril 2006

as aventuras de um chinês na china

O Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal foi a Otava para defender os direitos dos portugueses repatriados. Insinuou desconfianças, contratou um advogado para se inteirar se o governo do país estava a cumprir a lei, e conseguiu, «por cortesia», ser recebido pelos seus homólogos dos Negócios Estrangeiros e da Emigração.
Regressou, ontem mesmo, de nariz caído, e com a surpreendente informação, que lhe terá sido transmitida pelos seus anfitriões, de que, no Canadá, «quem está ilegal tem que se ir embora, como em Portugal». Nada que certamente lhe não lhe pudessem ter dito pelo telefone, ou ao seu embaixador local, de modo a poupar-nos a tão exótica epopeia. Pelo caminho, ainda escutou uns enxovalhos de um tal Richard Boraks, advogado dos portugueses vitimados pela medida de expulsão, que considerou a sua visita ao Canadá «um insulto».
Em face disto, subsiste apenas uma dúvida: por quanto tempo mais vai José Socrates manter este democrata-cristão nas Necessidades? Talvez fizesse mais falta no Largo do Caldas, onde, quem sabe, o seu regresso pudesse contribuir para o ambiente de animação generalizada que por lá vai e que tanto tem divertido o país. É só uma sugestão.



Do prestigiado jornal brasileiro «O Notícias Falsas»:

«Celso Amorim, Ministro das Relações Exteriores do governo brasileiro, acabou de regressar ao seu país depois de uma breve visita a Lisboa, para reunir com o seu homólogo do governo português. Na agenda do encontro, a expulsão de mais de 200 cidadãos brasileiros que viviam clandestinamente em Portugal.
O caso provocou, nos últimos dias, alguma tensão entre Lisboa e Brasília, tendo Celso Martins qualificado a atitude portuguesa de «muito suspeita e de duvidosa legalidade». À chegada a Portugal, o Ministro fazia-se acompanhar de um advogado especializado na legislação portuguesa sobre imigração, por acaso o mesmo causídico que patrocinou a drª Fátima Felgueiras na sua fugaz passagem por Terras de Vera Cruz. O ministro manifestou-se chocado com o tratamento que a comunicação portuguesa dera ao sucedido, nomeadamente por ter qualificado os cidadãos brasileiros em causa como marginais.
O Palácio das Necessidades fez saber que apenas recebia o ministro «por cortesia», realçando em comunicado que «em Portugal, a lei é para cumprir e quem não estiver autorizado a residir no país terá de o abandonar. Como em qualquer Estado de Direito», conclui o comunicado.
O incidente foi mais um dos muitos episódios que têm agravado as relações entre Portugal e o Brasil, depois da saga dos célebres «dentistas brasileiros», das permanentes reclamações das autoridades brasileiras pelas expulsões de compatriotas seus e pelo modo como os mesmos são tratados pelas autoridades portuguesas».