(Continuação daqui)
7. O paradigma do trapalhão
O meu julgamento teve seis sessões e durou quatro meses, de Fevereiro até Junho de 2018. Até então eu só tinha estado uma vez numa sala de tribunal e somente por breves minutos. Eu não fazia ideia de como funcionava a justiça em Portugal.
As surpresas e as perplexidades começaram ainda na fase de instrução sucedendo-se a um ritmo alucinante nos meses seguintes, a tal ponto que a diferença entre a ideia que eu tinha da justiça e aquela que tenho hoje é como do dia para a noite. Aquilo é tenebroso.
Uma das perplexidades teve por centro o Professor Jónatas Machado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Uma das principais características da cultura jurídica em Portugal é o seu provincianismo. Um engenheiro, um médico, um gestor, um economista, um psicólogo é formado lendo autores estrangeiros e tem mercado profissional no estrangeiro. Nada disso se passa com um jurista formado em Portugal. Ele não tem mercado profissional fora do país.
Que utilidade profissional pode ter um jurista português em Inglaterra, EUA, Suíça, França, Canadá ou Alemanha? Nenhuma. A nossa cultura jurídica é ainda tão atrasada, tão inquisitorial, tão anti-democrática, tão verborreica, tão fechada e tão provinciana que os juristas portugueses, enquanto juristas, não emigram profissionalmente e são formados dentro de um quadro intelectual quase exclusivamente português. Os juristas são os mais provincianos de todos os profissionais de colarinho branco do país.
Depois, são eles que profissionalmente monopolizam o sector da justiça na condição de advogados, procuradores do MP e juízes, acabando a citar-se pacoviamente uns aos outros, numa espécie de orgia colectiva e masturbação intelectual mútua que culmina em grandiosos orgasmos corporativos.
Durante o julgamento no Tribunal de Matosinhos só falei por duas vezes, na sessão inicial e nas alegações finais. E logo que me foi dada a palavra na sessão inicial comecei a expor a jurisprudência do TEDH sobre o conflito entre o direito à liberdade de expressão e o direito à honra.
Mas não por muito tempo. O juiz João Manuel Teixeira em breve me interrompeu porque eu estava a fazer parecer mal todos os juristas presentes na sala - advogados, magistrado do MP, o próprio juiz - que, verificaria eu mais tarde, não sabiam nada do assunto.
Entre as raras referências bibliográficas existentes em Portugal sobre o tema estava o livro do Professor Jónatas Machado com o título "Liberdade de Expressão" (cf. aqui) que eu comecei por citar em tribunal para explicar que, à luz da jurisprudência do TEDH, que é a jurisprudência que, em última instância, vale para julgar estes casos, eu não tinha cometido crime nenhum.
Entre todos os juristas presentes na sala, o mais provinciano era o advogado Adriano Encarnação, da sociedade de advogados Miguel Veiga, Neiva Santos e Associados, que representava a acusação particular. E logo desde o início eu me fui divertindo neste blogue com a sua figura, chamando-lhe carinhosamente Papá Encarnação e advogado de província, e citando frequentemente o Professor Jónatas Machado, de cujo livro era óbvio que ele nunca tinha ouvido falar.
O clímax ocorreu durante as alegações finais num momento que eu deixei registado neste blogue. Foi um momento em que, na sala do tribunal, eu tive vontade de saltar do banco dos réus e atirar-me para o chão e espernear a rir (cf. aqui). (Devo dizer que o humor e o sarcasmo eram as minhas únicas armas de defesa na altura).
O Papá Encanação servir-me-ia a vingança meses depois.
Em primeira instância, eu fui condenado por ofensas à sociedade de advogados Cuatrecasas, mas absolvido de difamação ao Paulo Rangel. O Papá Encarnação recorreu da absolvição para a Relação do Porto (onde eu viria a ser condenado também por difamação).
Este caso sempre me parecera uma caso-de-escola, como escrevi na altura (cf. aqui), e a sentença do TEDH - produzida por unanimidade de sete juízes -, veio esta semana confirmar. Eu apoiava-me na extensa literatura produzida no estrangeiro - incluindo o próprio TEDH -, acerca da matéria e em que o livro do Professor Jónatas Machado apenas servia para confirmar a minha firme convicção de que não tinha cometido crime nenhum.
Pois bem, tive uma surpresa. O recurso que o Papá Encarnação enviou para a Relação era acompanhado de um extenso parecer do Professor Jónatas Machado que recomendava a minha condenação.
Eu não podia acreditar no que estava a ler. "Um tipo destes - é assim que ele merece ser tratado - deixa-se corromper desta maneira?", "A Universidade em Portugal também já se prostitui a este ponto?", foram as questões que me ocorreram naquele momento ao espírito, um momento que também deixei registado neste blogue (cf. aqui).
Chegaria o dia em que eu e o Professor Jónatas Machado - se é que ele merece ser assim tratado - ajustaríamos contas como dois universitários que somos.
Esse dia chegou esta semana com a decisão do TEDH. Na altura, eu cheguei a pensar que tinha estragado a carreira ao Professor Machado, ao publicar no blogue a contradição entre o seu livro e o seu parecer. Mas não. Ele não tem vergonha e os seus pares também não. Desde então, ele foi promovido e eleito pela segunda vez consecutiva como Director da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
E ainda bem, porque ele representa melhor do que ninguém - ele é um verdadeiro paradigma - de um grande número de profissionais que são formados na Faculdade Direito da Universidade de Coimbra e em outras Faculdades de Direito do país.
E que paradigma é esse?
É o paradigma do trapalhão.
(Continua acolá)
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