II. Bolinhas
Era a última oportunidade e o momento decisivo - o das alegações finais. O Papá Encarnação trazia o seu discurso escrito, foi o único a fazê-lo. Eram umas 30 a 40 páginas, que ele leu pausadamente.
O Papá Encarnação sabe que os intelectuais fazem citações. E não se quis ficar atrás.
Mas os intelectuais fazem citações já com o argumento suficientemente avançado, seja para o suportar seja para invocar uma objecção.
Ora, como ao Papá Encarnação faltava o argumento, decidiu atacar logo de início:
-Como diz o Professor Jónatas Machado...,
e fez uma pausa.
Por um momento, deu-se-me um aperto no coração, foi a mais absoluta surpresa - o Papá Encarnação ia citar o Professor Jónatas Machado.
Ainda por cima o Professor Jónatas Machado, o académico de Direito que mais tem contribuído para divulgar a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em Portugal sobre o direito à liberdade de expressão e a sua prevalência sobre o direito à honra.
Eu não conseguia imaginar o Papá Encarnação a fazer pesquisas bibliográficas numa biblioteca, nem mesmo na internet. Ele não usa sequer o computador em tribunal, isso eu já tinha visto. Ele usa a velha tecnologia do papel e do lápis e, nos momentos mortos do julgamento, desenha bolinhas no papel, em sentido contrário ao dos ponteiros do relógio.
Onde é que ele teria ido descobrir o Professor Jónatas Machado?
Eu conseguia imaginar o Papá Encarnação, no intervalo das sessões, a combinar uma almoçarada com as testemunhas - uma bacalhauzada, uns chocos com tinta, uma cabritada. Mas eu não conseguia imaginá-lo a retirar-se sozinho para ir reflectir e divagar sobre uma questão abstracta.
O Professor Jónatas Machado é conhecido por um tema abstracto - o direito à liberdade de expressão numa sociedade democrática - e é esse o título da sua obra principal: "Liberdade de Expressão".
Ora, uma sociedade democrática é uma sociedade de massas, fortemente cosmopolita, onde todos são iguais e anónimos e, por isso, é uma sociedade que convida ao argumento abstracto e à generalização. É este o terreno próprio do intelectual, que é a categoria social à qual o Professor Jónatas Machado pertence.
Mas o ambiente em que o Papá Encarnação parece viver e há muito praticar a sua profissão - já tinha dado para ver - é um ambiente muito diferente. É o ambiente da aldeia, o ambiente provinciano onde tudo é concreto e particular, e sobretudo mensurável, até a honra do regedor - vale tanto mas pode fazer-se um desconto.
Que importância poderia ter o Professor Jónatas Machado para um homem habituado a pensar no concreto, na pessoa concreta do regedor e na do aldeão, no valor concreto da honra do regedor, e, acima de tudo, nas ovelhas e nos cabritos do aldeão porque, na realidade não existe nada de mais concreto do que ovelhas e cabritos?
Onde é que o Papá Encarnação teria ido buscar o Professor Jónatas Machado e para quê?
Por um breve momento, o mistério expandiu-se no meu espírito, os meus olhos deviam parecer esbugalhados, tinha a respiração suspensa, agarrava o banco dos réus com todas as forças que tinha.
E aquela voz pausada do Papá Encarnação não ajudava nada à situação, só agravava a tortura.
Até ele acrescentar:
-... que é um autor que o réu já citou em tribunal...
Foi um alívio.
Sem comentários:
Enviar um comentário