24 janeiro 2020

jurisprudência de aldeia

O presidente do Tribunal da Relação do Porto, juiz desembargador Ataíde das Neves, invocou o artº 43º do Código do Processo Penal (CPP) e a sua jurisprudência para recusar o pedido de escusa do seu colega, juiz-desembargador Eduardo Rodrigues Pires, para julgar o caso dos e-mails envolvendo o Benfica e o F.C. Porto.

O pedido de escusa havia sido apresentado pelo juiz Rodrigues Pires que é sócio do Benfica há mais de 50 anos, já foi até distinguido nessa qualidade com a "Águia de Ouro", e é também acionista do Benfica SAD.

É preciso que se diga que a argumentação do juiz Ataíde das Neves centrada no artº 43º do CPP e respectiva jurisprudência é falsa porque, quando se trata de avaliar a imparcialidade dos juízes, o artº 43º do CPP não é lei em Portugal. A lei sobre esta matéria que vigora em Portugal é o artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a sua jurisprudência.

O artº 43º do CPP foi lei em Portugal para decidir sobre a imparcialidade dos juizes no tempo em que Portugal era uma sociedade fechada e autoritária, quer dizer, no tempo de Salazar. Diz assim (cf. aqui, ênfase meu):

Artigo 43.º
Recusas e escusas

1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º
3 - A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.
4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.os 1 e 2.
5 - Os actos processuais praticados por juiz recusado ou escusado até ao momento em que a recusa ou a escusa forem solicitadas só são anulados quando se verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo; os praticados posteriormente só são válidos se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo.

 Mas, desde que em 1978, Portugal aderiu à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a lei sobre esta matéria passou a ser o artº 6º da Convenção. Este, diz assim, no seu nº 1 (cf. aqui, ênfase meu):

ARTIGO 6°
 Direito a um processo equitativo
1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela (…)

É certo que juízes, advogados e magistrados do MP continuam em Portugal a invocar o artº 43º do CPP e a sua jurisprudência de aldeia, como o juiz Ataíde das Neves agora fez. Mas só o fazem para passar tempo, para justificar aquilo que ganham aos olhos do público e para demorar e obstaculizar a justiça.

Porque no dia em que se quiser fazer justiça sobre esta matéria - a da imparcialidade dos juízes - e não apenas entreter a justiça ou andar a brincar à justiça, como o juiz Ataíde das Neves parece fazer,  o recurso ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é inevitável, que é quem decide, em última instância, sobre este assunto.

Eu próprio escrevi extensamente sobre esta matéria neste blogue há pouco tempo e curiosamente a propósito de um caso de falta de imparcialidade de um juiz do Tribunal da Relação do Porto (cf. aqui: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez),

Ora, a jurisprudência do TEDH acerca desta matéria é muito simples. O TEDH distingue entre um critério subjectivo, que se refere à predisposição íntima do juiz para ser imparcial; e um critério objectivo que se refere à existência ou não de sinais exteriores que ponham em causa a imparcialidade do juiz.

Para o TEDH, a imparcialidade subjectiva de um juiz é sempre presumida porque não há maneira de ser avaliada. Já quanto à imparcialidade objectiva, a jurisprudência estabelece que basta que exista um sinal que, aos olhos do cidadão comum, levante uma dúvida legítima para que a imparcialidade do juiz possa ser posta em causa.

E esse sinal existe no caso do juiz Rodrigues Pires?

Existe, é mais do que um,  e foi o próprio juiz que os forneceu - é sócio do Benfica há mais de 50 anos, Águia de Ouro, e acionista do Benfica SAD.

Se o Tribunal da Relação do Porto insistir em manter o juiz Rodrigues Pires a julgar o caso dos e-mails envolvendo o Benfica e o F. C. Porto é mais do que certo que, se o caso chegar ao TEDH - como, nessa circunstância, inevitavelmente chegará -, este Tribunal vai condenar o Estado Português por violação do artº 6º da CEDH, considerando que o julgamento que teve lugar no TRP não foi um julgamento imparcial.

Sem comentários: