13 outubro 2019

A imparcialidade dos juizes (IV)

(Continuação daqui)


IV. Na parvónia dele



Eu sempre olhei para o magistrado X como um simpático batoteiro. Na Faculdade, ele devia ser o estudante que mais copiava nos exames. E não devia haver ninguém que andasse na farra até tão tarde nas vésperas dos exames como ele.

Aqueles olhos aparentavam muitos anos de noites de farra.

Mas aquilo que eu não esperava nada é que, quando em Maio, meti um requerimento ao Tribunal da Relação do Porto pedindo a anulação do acórdão (cf. aqui) por falta de imparcialidade do juiz relator, e com base nos argumentos a) e b) que explicitei anteriormente (cf. aqui), umas semanas depois o magistrado António Vasco Guimarães, que sucedeu ao magistrado X na Relação, saísse em defesa do juiz.

A minha surpresa seria a dobrar quando, tudo contabilizado, me dei conta que, para além do magistrado Vasco Guimarães, representando a acusação pública, também o Papá Encarnação, representando a acusação particular, saíra em defesa do juiz-relator.

Eu pensava que o juiz não precisava de defensores e que se podia defender a si próprio perante as imputações que eu lhe fazia de falta de imparcialidade. Mas tive de reconhecer mais tarde que, com dois defensores espontâneos, o juiz não tinha necessidade de se defender, como veio a acontecer.

E como é que foi feita a defesa do juiz pelo magistrado Vasco Guimarães?

Foi feita com batota, porque parece que o Ministério Público não sabe viver de outra maneira.

No meu requerimento, eu atacava a falta de imparcialidade do juiz com base no artº 6º da CEDH e na sua jurisprudência.

E vai daí, o magistrado Vasco Guimarães, basicamente responde assim: "Bom, essa coisa do artigo 6º da CEDH é o mesmo do que estar a suscitar um incidente de recusa do juiz previsto no artº 43º do CPP" e depois vai por ali fora sem parar a citar a jurisprudência do artº 43 do CPP e a meter-se naquela discussão sem fim de saber se os motivos que eu invocava eram "sérios e graves", para concluir obviamente que não eram.

E não se esquece sequer de acrescentar que o meu pedido de anulação do acórdão é extemporâneo porque eu devia ter levantado a questão da imparcialidade do juiz antes do acórdão ter sido proferido, como se eu tivesse a obrigação de conhecer os juízes que iriam julgar o meu processo e escrutinar previamente a sua credibilidade pública.

E assim gastou ele cinco páginas inteiras, que lhe devem ter custado uma manhã de trabalho, a falar literalmente de chacha porque, quando se trata da imparcialidade dos juízes, aquilo que é lei em Portugal , não é o artigo 43º do CPP e sua jurisprudência, mas o artº 6º da CEDH e respectiva jurisprudência.

O magistrado Vasco Guimarães ao especular sobre o artigo 43º do CPP e sua jurisprudência esteve a especular sobre uma lei que não tem valor legal em Portugal. É uma lei morta. E eu estou a imaginar um juiz do TEDH a apreciar o texto do magistrado Guimarães e a pensar:

-Este magistrado Guimarães tem lá um certo artigo 43º de um tal CPP na sua parvónia, e julga que o mundo começa e acaba lá na parvónia dele. Mas não. O que vale para toda a Europa que subscreveu a CEDH não é o que diz a lei lá da parvónia dele, mas o artigo 6º da CEDH e a correspondente jurisprudência estabelecida pelo TEDH

Vale a pena citar o magistrado Guimarães quando ele dá este salto de mágica da legislação que se aplica a toda a Europa para a legislação que se aplicava à parvónia dele até 1978, que foi o ano em que Portugal aderiu à CEDH.

Depois de introduzir a questão perante os desembargadores do TRP em que eu peço a anulação do acórdão, por falta de imparcialidade do juiz relator, ao abrigo do artº 6º da CEDH, escreve o magistrado Guimarães:

"Não lhe assiste razão [ao arguido]. Por um lado, porque, sob a capa da arguição da nulidade do acórdão por violação do art. 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o recorrente mais não faz do que formular um pedido de recusa de juiz ao abrigo do disposto no art. 43º, nº 1 do CPP. Fá-lo, contudo, extemporaneamente e perante quem não tem competência para dele conhecer – art.s 44º e 45º, nº 1, al. a), do CPP".

E agora vão ser cinco páginas de pura palha com citações de acórdãos do Supremo sobre o artigo 43º do CPP e a célebre questão de os motivos serem ou não serem "sérios e graves". Serão sérios, serão graves, pouco sérios e muito graves, muito graves e pouco sérios, pouco sérios e pouco graves?

O Código do Processo Penal é a mais requintada expressão da tradição inquisitorial do direito penal português, e este artigo 43º é um exemplo. Os algozes terão sempre razão porque o Código lhes permite decidirem sempre a seu favor e na mais completa arbitrariedade.

Na jurisprudência do TEDH não há motivos "sérios e graves" ou com outra qualificação. Há factos ou não há factos que ponham em causa a imparcialidade do juiz. E, neste caso, há factos: a) o juiz é fazedor de opinião como eu na comunicação social, com posição ideológica bem vincada e oposta à minha, e está, portanto, em situação de conflito de interesses; e, mais importante ainda,  b) o juiz é companheiro do Paulo Rangel numa IPSS chamada "O Ninho".

Mas o magistrado Guimarães de factos nem quer saber e menos ainda da lei que verdadeiramente se aplica no país. Quer entreter-se, como fazem os burocratas, com papel para lá, papel para cá, porque, no fim do dia, ele ganha o mesmo, que é agora mais do que o próprio primeiro-ministro.

Ei-lo a especular sobre o artigo 43º do CPP e sobre os motivos "sérios e graves":

"(…) decorre do art. 43º do CPP, que não basta o puro convencimento subjetivo do arguido para que se possa ter por verificada a suspeição sobre a imparcialidade do juiz. Na verdade, é necessário que o motivo gerador da suspeição seja sério e grave, ou seja, um motivo do qual resulte um estado de forte desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, a avaliar objectivamente, não bastando a simples discordância jurídica do requerente, o seu puro convencimento subjetivo, para se ter por verificada a suspeição sobre a imparcialidade do Senhor Desembargador, relator do acórdão, cuja nulidade foi arguida.
(…)
Por último, igualmente irrelevante do ponto de vista jurídico, pois que não se vê como possa constituir motivo sério e grave gerador de suspeita sobre a imparcialidade do Magistrado, é a mera insinuação sobre a existência de relações de amizade entre este e o Assistente, decorrente da integração deste numa comissão de honra de uma conferência organizada por Associação de que o primeiro será Presidente da Mesa da Assembleia Geral". 

Não é de mais insistir. Quando se trata da imparcialidade dos juízes, o artigo 43º do CPP não é lei em Portugal, nem a sua jurisprudência. Já foi, agora é lixo. Lei é o artigo 6º da CEDH e a sua jurisprudência.

O magistrado Vasco Guimarães gastou cinco páginas de papel timbrado do Ministério Público e uma manhã de trabalho a falar de lixo. Falar de justiça, isso, nem lhe passou pela cabeça.

(Continua)

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