20 outubro 2019

A imparcialidade dos juizes (X)

(Continuação daqui)

X. Porquê o atavismo?


O assunto da imparcialidade dos juízes em Portugal é regulado pelo artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e respectiva jurisprudência (cf. aqui, pp. 48 e segs.).

Antes de Portugal aderir à CEDH em 1978 o assunto era regulado pelo Código do Processo Penal, artºs 43º-45º  e respectiva jurisprudência (cf. aqui).

Em que é que difere, se difere em alguma coisa, o tratamento dado ao assunto na CEDH e no CPP?

É um tratamento radicalmente oposto num caso e noutro.

Nos termos do CPP, o incidente sobre a imparcialidade do juiz (tribunal) tem de ser suscitado,

1) antes do julgamento;
2) junto de um tribunal superior
3) por um "motivo grave e sério" (introduzindo aqui um enorme elemento de subjectividade)

ao passo que, no termos da jurisprudência do TEDH, o incidente sobre a imparcialidade do juiz (tribunal) pode ser suscitado

1) em qualquer momento (antes ou depois do julgamento);
2) perante o tribunal que o provocou;
3) desde que exista um facto objectivo que, ao espírito do homem comum, suscite uma dúvida legítima acerca da imparcialidade do juiz (tribunal).

A que é que se deve esta oposição radical entre a legislação da CEDH, que é lei em Portugal, e a do CPP, que é a legislação tradicional portuguesa, e que agora é letra morta, porque a CEDH se lhe sobrepôs? Será que não existe racionalidade nenhuma na legislação tradicional portuguesa sobre o tema da imparcialidade dos juízes (e sobre muitos outros)?

Existe, sim. A legislação do CPP é uma legislação feita para uma sociedade pequena, fechada, tradicional, autoritária, uma comunidade em que todos se conhecem (a imagem adequada seria a de uma pequena vila ou aldeia portuguesa). Ao passo que a legislação da CEDH está feita para um tipo de sociedade oposta, aberta, moderna, democrática e cosmopolita onde a esmagadora maioria das pessoas não se conhecem umas às outras (a imagem adequada é a de uma grande cidade de vários milhões de habitantes).

Um homem que viva numa pequena vila ou aldeia portuguesa (ou mesmo numa pequena cidade) onde todos se conhecem, conhece o juiz  lá da terra e o juiz também o conhece a ele. No caso de este homem vir a ser julgado pelo juiz, se existir alguma animosidade pessoal entre ambos que seja conhecida na comunidade, é natural que a lei exija que o incidente de imparcialidade seja levantado antes do julgamento, dada a suspeita que existe de que o juiz não será imparcial em relação a ele.

Também é natural que o incidente tenha de ser suscitado perante um tribunal superior porque lá na terra só existe aquele juiz, e seria impróprio que fosse o próprio juiz a pronunciar-se sobre o incidente de imparcialidade de que é alvo.

Por último, a alegação de falta de imparcialidade tem de ser por um motivo "grave e sério", e não pode ser só porque o juiz um dia ia distraído a passear na rua, e não cumprimentou aquele homem por distração, uma falta que o homem agora interpreta como o juiz tendo algum preconceito contra ele.

Pelo contrário, numa grande sociedade, aberta e democrática, de vários milhões de habitantes, o homem e o juiz não se conhecem e, portanto, em geral, o réu vai presumir a imparcialidade do juiz. Só perante uma sentença manifestamente injusta, o réu terá motivos para se pôr a questão de saber se o juiz foi ou não imparcial e, no caso de encontrar factos que legitimem essa suspeição, levantar o assunto perante o tribunal.

Sendo uma grande cidade, o tribunal terá outros juízes para além deste. Portanto, os seus pares podem perfeitamente avaliar se este juiz foi ou não imparcial e, em caso afirmativo, mandar repetir o julgamento com outro juiz.

Finalmente, para que a queixa seja procedente exigem-se factos objectivos, e não motivos cuja seriedade ou gravidade seriam sempre de avaliação subjectiva.

Em suma, a CEDH foi feita para a sociedade aberta de que falava Karl Popper no seu clássico "A sociedade aberta e os seus inimigos". Pelo contrário, o CPP foi feita para "os seus inimigos", a sociedade fechada, atávica e pobre.

Chegado a este ponto, é altura de perguntar:

-Mas então, por que é que os juristas portugueses - advogados, magistrados do MP e juízes - se agarram ao CPP e não à CEDH quando se trata de discutir a imparcialidade dos juízes, como tenho vindo a mostrar ao longo do meu case study?

Por outras palavras,

-Por que é que os juristas portugueses se agarram a uma jurisprudência de pequena comunidade, fechada e autoritária, que já não vale em Portugal, em lugar de discutirem o assunto com base na CEDH e na sua jurisprudência, que é uma jurisprudência de grande sociedade, aberta e democrática, e que é a que vale no país?

Ou ainda, da forma mais sucinta que consigo colocar a questão:

-Porquê o atavismo da cultura jurídica em Portugal, por que é que ainda há tantos juristas em Portugal a pensar e a agir como se o país ainda vivesse na Idade Média?

Esta é a grande questão à qual procurarei reponder mais tarde.

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