16 fevereiro 2009

os advogados


Em posts anteriores (aqui e aqui), olhei o mercado como um sistema de resolução de conflitos ou um sistema de justiça. O meu propósito neste post é o de lançar mão de uma analogia - uma sala de audiências em tribunal - para fazer luz sobre o funcionamento deste sistema e avaliar a qualidade dos verdictos que produz. Para tanto, tomo como padrão dois atributos essenciais de um sistema de justiça - a independência das partes e a imparcialidade das decisões.

Na sala de audiências está, de um lado, uma das partes litigantes - a dos vendedores; do outro lado, a outra parte litigante - a dos compradores. Este é um tribunal que possui uma característica peculiar. Não há nele um juiz. As decisões do tribunal são produzidas por um processo impessoal. Este processo consiste em deixar cada vendedor litigar livremente com cada comprador. Cumprindo-se as hipóteses clássicas (homogeneidade do produto, informação perfeita, etc.), este processo produz o verdicto que resolve o conflito principal entre produtores e consumidores - o preço (único) do mercado.

A este preço - que corresponde ao preço de equilíbrio no modelo de concorrência perfeita dos economistas - designarei por preço justo. Este preço é igual ao custo (marginal) de produção. Ele é também igual ao valor subjectivo que o produto possui para o consumidor (marginal)

Neste litígio entre compradores e vendedores, a capacidade de uma das partes para se organizar - a dos produtores - é muito maior do que a da outra - a dos compradores. Eles organizam-se em empresas que empregam gestores profissionais e equipas comerciais e de marketing. Pelo contrário, do lado dos compradores, as organizações de consumidores são raras e ineficazes, sofrendo generalizadamente do problema de free riding. Tudo se passa, então, como se uma das partes litigantes dispusesse agora de um numeroso grupo de advogados ao seu serviço para defender e promover a sua causa, enquanto a outra não possui nenhum.

Está na natureza e na desproporção das forças em presença que o verdicto do mercado vai agora pender para o lado dos produtores. Na realidade, o preço do produto tem de ser agora suficientemente elevado relativamente ao preço justo, tal como foi definido anteriormente - quanto mais não seja para pagar aos advogados. Mais importante ainda, os advogados são, em parte, pagos à comissão sobre a diferença entre o preço do mercado e o preço justo, o qual corresponde ao custo de produção. O incentivo que eles possuem para desenvolver técnicas de argumentação capazes de persuadir os consumidores a comprar é consideravel.
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E é isso que eles vão fazer. O objectivo de todas elas é o mesmo: encorajar a procura por forma a manter os preços elevados, maximizando a diferença entre o preço corrente no mercado e o preço justo (1). As técnicas de promoção desenvolvidas vão desde as mais honestas até ao limite das enganosas (2). Os advogados , que estão ao serviço dos produtores, vão mesmo chegar ao ponto de se oferecerem para resolver um problema aos compradores - o de lhes arranjarem dinheiro para eles continuarem a comprar.

Se um juiz, de repente, entrasse nesta sala, o que veria ele? Uma multidão ordeira dividida em pequenos grupos, de duas, três, às vezes quatro pessoas, com um ar geralmente satisfeito. Porém, se se decidir a ir espreitar naquilo que se passa em cada grupo, e que domina a atenção das pessoas que o compõem, é bem provável que, depois de uma ronda à sala, decidisse suspender imediatamente a sessão. Razão: não se cumpre uma das condições básicas para que seja feita justiça - a independência das partes - pelo que os verdictos saídos deste processo não podem nunca ser justos. Eles vão sair enviesados em favor dos produtores.

A um canto da sala, um jovem casal acabava de comprar a casa dos seus sonhos por 400 mil euros, com crédito a 30 anos. Uma hora antes tinha comprado um carro, o último modelo da BMW, por 50 mil euros com crédito a cinco anos. À frente dele, uma senhora de 73 anos, comprava uma máquina de lavar último modelo, com garantia de 20 anos, para substiuir a antiga com dois anos de utilização, pelo preço de 25 mil euros, 20% pago a pronto, o restante em prestações a 10 anos. Um jovem que ia a passar na sala foi interceptado pelo representante de um banco que lhe colocou um cartão de crédito na mão, com limite dois mil e quinhentos euros; ele deu meia volta e comprou uma jóia à namorada que lhe custou dois mil. Mais adiante, um senhor de gravata vendia a um empregado de comércio na iminência de ficar desempregado umas férias de um mês nas Ilhas Maurícias que ele há anos ambicionava para a família, no valor de 10 mil euros, e até lhe arranjava financiamento, na realidade o representante do banco estava mesmo ali ao lado, pronto a assinar os papeis.

Não fossem os ordenados, as comissões e os bonus a pagar aos advogados, as despesas de promoção mais as comissões a pagar aos banqueiros, e o preço daquela casa seria 200 mil euros, o do carro 30 mil, o da máquina de lavar 15 mil, o da jóia mil e duzentos e a viagem não iria além de sete mil. Mas aquilo que mais impressionou o juiz foram os advogados dos banqueiros que andavam pela sala a emprestar dinheiro - dinheiro que os seus próprios bancos não tinham.

A realidade é que nunca existiu juiz nesta sala. O mercado é um sistema de justiça impessoal. Os produtores e os seus advogados gradualmente iam tomando conta da sala de audiências. Ocasionalmente já se viam compradores encostados à parede, outros de rastos pelo chão. Foi nessa altura que os outros pararam, e foram chamados à reallidade: "Mas será que estas coisas todas valem o que eu estou a pagar por elas? Será que, em primeiro lugar, eu tenho necessidade delas? E será que vou conseguir pagá-las?".

Quando os compradores, agora quase todos acossados, encostados e comprimidos numa banda da sala de audiências, pararam para pensar, os advogados concluiram que não tinham mais nada a fazer ali, e retiraram-se da sala, não sem antes, à saída, cobrarem as suas comissões e receberem os seus bónus. Os produtores deitavam as mãos à cabeça - os compradores tinham parado de comprar. Muitos foram imediatamente à falência. E os banqueiros andavam agora em pânico a tentar arranjar o dinheiro que tinham andado a emprestar e que era dinheiro que, em primeiro lugar, eles nunca tiveram.
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(1) Trata-se aqui, no jargão dos economistas, de maximizar o lucro económico, por oposição ao lucro normal, o qual, sendo um custo de produção, está incluido no preço justo.
(2) Presumo que todos os intervenientes no processo são pessoas de bem, embora sujeitas a todas as fraquezas humanas .

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