15 fevereiro 2009

ao preço de lebre


Neste post retomo o tema que tratei aqui. Trata-se de contrapor à visão tradicional do mercado, como um sistema ou mecanismo de afectação de recursos, uma nova visão que consiste em ver o mercado como um sistema ou mecanismo de resolução de conflitos - na prática, um sistema de justiça. Pretendo agora analisar as crises económicas e o seu desenvolvimento sob estas duas visões alternativas.

Na visão convencional em que o mercado é visto como um sistema de afectação dos recursos, as crises económicas resultam de uma mal-afectação dos recursos (*) - v.g., produzem-se batatas por excesso em relação aos desejos ou preferências dos consumidores, e cebolas por defeito. De acordo com esta visão, as crises curam-se por si mesmas, bastando que se deixe o mercado funcionar livremente. Deixe-se o preço das batatas cair, incluindo o salário dos trabalhadores deste sector, e o preço das cebolas subir, incluindo o salário dos trabalhadores deste sector, e tudo fica resolvido. A queda dos preços e salários no sector das batatas reduz a oferta neste sector; o aumento dos preços e salários no sector das cebolas aumenta a oferta neste sector; desde que não haja barreiras à entrada ou saída em qualquer dos sectores, os recursos (vg., trabalhadores, empresários e seus capitais) fluem naturalmente de um para outro de modo a colmatar o problema que deu origem à crise - o desajustamento entre a oferta e a procura nos diferentes sectores da actividade económica.

Considero agora a visão alternativa - o mercado como um sistema de resolução de conflitos ou sistema de justiça. Quando é que uma crise é susceptível de ocorrer neste sistema? Quando uma das partes - consumidores ou produtores generalizadamente, ou uma fracção significativa de uns ou de outros - considerar que o mercado não assegura mais a justiça. A probabilidade é maior de que sejam os consumidores a fazê-lo.

Na sua ânsia de obter lucro, condição essencial da sua sobrevivência no negócio, os produtores são levados a adoptar várias técnicas, todas com o mesmo fim - maximizar as vendas e, em última instância os lucros. Até aqui o assunto é pacífico mesmo para a teoria económica convencional.

Para o efeito empregam gestores profissionais para as suas empresas, separando a propriedade e a gestão da empresa. Refiro-me aos gestores propriamente ditos (administradores), mas também à classe dos comerciais. Estes profissionais recebem à comissão (vg., comissões comerciais, bónus de administração, etc.). A visão destes profissionais é essencialmente de curto prazo, centrada nas vendas e nos lucros do ano, porque é daí que derivam os seus rendimentos. A sua preocupação com a falência da empresa é praticamente nenhuma - esta está reservada aos accionistas. Os gestores profissionais possuem um poderoso incentivo a conduzir a empresa de uma maneira tal que, mesmo que a prazo ela se encaminhe para a falência, eles próprios, entretanto, enriqueceram em bónus e comissões.

A maneira de o conseguirem é através de técnicas de venda agressivas (marketing), que criem necessidades constantes, que levem os compradores a adquirir aquilo de que não necessitam, que vão ao ponto de arranjarem os próprios meios de financiamento para os compradores adquirirem aquilo de que não precisam. As maiores empresas criam para o efeito as suas próprias unidades financeiras especializadas na concessão de crédito; outras tornam-se accionistas dos bancos. A palavra de ordem passa a ser: Emprestem!

Os preços dos produtos mantêm-se altos, mas o valor (subjectivo) daquilo que os compradores adquirem é cada vez mais baixo. O segundo carro custa tanto como o primeiro, mas o valor que o consumidor retira dele é muito mais baixo; o mesmo para a segunda casa, a segunda viagem de férias no mesmo ano. A discrepância entre aquilo que o consumidor paga pelos produtos que adquire, e o valor (subjectivo) que eles possuem para ele, é cada vez maior e generalizada. É como se, generalizadamente, o sistema de mercado andasse a vender gato por lebre - e ao preço de lebre. (O mercado é uma instituição de origem protestante e já foi notada aqui a propensão desta cultura para a venda de banha da cobra) (**).

A crise é desencadeada quando os compradores - generalizadamente ou uma fracção deles -, considerarem que o sistema é injusto, que lhes anda a vender gato por lebre - e ao preço de lebre. (Começou por acontecer na actual crise com os produtos financeiros associados às hipotecas sub-prime, e rapidamente se generalizou a outros produtos financeiros e da chamada economia real). Os compradores deixam de comprar porque se dão conta de que estavam a ser enganados - que o sistema de mercado não assegura mais a justiça.

Ao contrário do que supõe a visão convencional, o sistema de mercado, através do mecanismo dos preços, não vai conseguir resolver a crise. Pelo contrário, só a agrava, dando razão aos compradores: "Eu não dizia que andávamos a ser enganados? Os preços das casas e dos automóveis já cairam tantos por cento e, ainda assim, ninguém lhes pega!...". Na realidade, quanto mais os preços cairem, maior se torna a desconfiança, menos as pessoas compram e mais grave se torna a crise.

(*) A escola austríaca põe ênfase no Estado como gerador desta crise de mal-afectação. O Estado interpõe-se entre consumidores e produtores, desvirtuando as escolhas dos primeiros.
(**) Existem outras maneiras de os produtores fazerem com que, a prazo, os consumidores se sintam ludibriados, elevando o preço do produto acima do valor (subjectivo) que ele possui para o consumidor. Uma delas consiste na cartelização do sector, muito mais fácil entre produtores do que entre compradores. Outra consiste na entrega ao Estado de um certo ramo de actividade, ou na interferência do Estado nesse sector, e o estabelecimento de preços administrativos ou de preços que são largamente determinados por via administrativa (energia, automóveis, gasolina, em Portugal são exemplos. Genericamente, o IVA não tem outro efeito senão agravar a discrepância).

Sem comentários: