09 fevereiro 2009

às vezes, ao desbarato


Ao falar de mercado neste post eu não pude deixar de relembrar aquela que foi uma das minhas mais memoráveis experiências num debate televisivo. Foi sobre a Lei do Transplante de Orgãos Humanos publicada em meados dos anos noventa e que, suponho, ainda hoje está em vigor.

Havia falta de orgãos para transplante em Portugal. O Governo fez uma lei que permitia aos médicos nos hospitais retirar os orgãos que entendessem a uma pessoa falecida, não sendo exigido qualquer consentimento prévio por parte desta em vida, ou por parte do seus familares após a sua morte. Considerei a lei abusiva e critiquei-a nos jornais. E, na minha qualidade de economista, propus uma alternativa para abastecer o país de orgãos para transplante - o estabelecimento de um mercado para orgãos humanos. As pessoas (ou os seus familiares, após a sua morte) passariam a receber um preço em troca da cedência de órgãos para transplante. O mercado livre igualaria a oferta à procura - como fazem todos os mercados, desde que sejam livres - e acabava com a escassez. (A minha tese está, por exemplo, referida aqui no capítulo "Doadores Vivos", e também aqui).

Três meses depois, o economista Gary Becker (Prémio Nobel, 1992) proporia, de forma independente, a mesma solução na sua coluna quinzenal na Business Week, para resolver a escassez de órgãos existente nos EUA. Eu esqueci-me, porém, que estava em Portugal, e a viver um síndroma de desaculturação prolongada.
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No seguimento de um desses artigos fui convidados para participar num debate na RTP sobre o assunto. (Os outros participantes estão referidos aqui). Fui insultado durante o programa, no intervalo do programa e no fim do programa. No dia seguinte, fui apontado a dedo na rua e também insultado, e não pretendo detalhar o que me chamaram em vários telefonemas anónimos que recebi em casa, alguns atendidos pelos meus filhos.

Foi a partir deste episódio que comecei a pensar em abandonar a minha actividade pública na imprensa, o que viria a concretizar pouco tempo depois. Eu não tinha necessidade de me estar a submeter, e à minha família, a estes vexames. A tradição da censura existente em Portugal tinha funcionado mais uma vez de forma espontânea, calando uma voz.

Vejo agora com maior nitidez o choque que causei. Eu quando falava de um mercado para órgãos estava a falar do mercado em abstracto, como um mecanismo de ajustamento entre a procura e oferta, mediado pelo sistema de preços. Eu não me tinha dado ainda conta da enorme incapacidade dos portugueses para o pensamento abstracto, e da sua excessiva concentração nas formas concretas de pensamento.

Do lado de lá do écran, porém, estaria um milhão de portugueses que, na sua maioria, ao ouvirem-me falar de um mercado para orgãos, não poderiam senão imaginar o mercado da Ribeira ou o do Bolhão, com as suas vendedeiras e os seus homens do talho, a venderem rins e fígados, às vezes ao desbarato. Não de porco. Mas humanos.

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