Ao falar de mercado neste post eu não pude deixar de relembrar aquela que foi uma das minhas mais memoráveis experiências num debate televisivo. Foi sobre a Lei do Transplante de Orgãos Humanos publicada em meados dos anos noventa e que, suponho, ainda hoje está em vigor.
Havia falta de orgãos para transplante em Portugal. O Governo fez uma lei que permitia aos médicos nos hospitais retirar os orgãos que entendessem a uma pessoa falecida, não sendo exigido qualquer consentimento prévio por parte desta em vida, ou por parte do seus familares após a sua morte. Considerei a lei abusiva e critiquei-a nos jornais. E, na minha qualidade de economista, propus uma alternativa para abastecer o país de orgãos para transplante - o estabelecimento de um mercado para orgãos humanos. As pessoas (ou os seus familiares, após a sua morte) passariam a receber um preço em troca da cedência de órgãos para transplante. O mercado livre igualaria a oferta à procura - como fazem todos os mercados, desde que sejam livres - e acabava com a escassez. (A minha tese está, por exemplo, referida aqui no capítulo "Doadores Vivos", e também aqui).
Três meses depois, o economista Gary Becker (Prémio Nobel, 1992) proporia, de forma independente, a mesma solução na sua coluna quinzenal na Business Week, para resolver a escassez de órgãos existente nos EUA. Eu esqueci-me, porém, que estava em Portugal, e a viver um síndroma de desaculturação prolongada.
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No seguimento de um desses artigos fui convidados para participar num debate na RTP sobre o assunto. (Os outros participantes estão referidos aqui). Fui insultado durante o programa, no intervalo do programa e no fim do programa. No dia seguinte, fui apontado a dedo na rua e também insultado, e não pretendo detalhar o que me chamaram em vários telefonemas anónimos que recebi em casa, alguns atendidos pelos meus filhos.
Foi a partir deste episódio que comecei a pensar em abandonar a minha actividade pública na imprensa, o que viria a concretizar pouco tempo depois. Eu não tinha necessidade de me estar a submeter, e à minha família, a estes vexames. A tradição da censura existente em Portugal tinha funcionado mais uma vez de forma espontânea, calando uma voz.
Vejo agora com maior nitidez o choque que causei. Eu quando falava de um mercado para órgãos estava a falar do mercado em abstracto, como um mecanismo de ajustamento entre a procura e oferta, mediado pelo sistema de preços. Eu não me tinha dado ainda conta da enorme incapacidade dos portugueses para o pensamento abstracto, e da sua excessiva concentração nas formas concretas de pensamento.
Do lado de lá do écran, porém, estaria um milhão de portugueses que, na sua maioria, ao ouvirem-me falar de um mercado para orgãos, não poderiam senão imaginar o mercado da Ribeira ou o do Bolhão, com as suas vendedeiras e os seus homens do talho, a venderem rins e fígados, às vezes ao desbarato. Não de porco. Mas humanos.
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