(Continuação daqui)
XLVII. Os despoderados
A popularidade que o Almirante Gouveia e Melo tem nas sondagens para a Presidência da República, e o nervosismo que está a causar nos meios políticos e partidários, suscita algumas semelhanças com a situação que Portugal vivia há quase cem anos atrás.
O Almirante parece ser chamado pelo povo como uma figura de autoridade para combater os excessos da liberdade (cf. aqui). É o grande conflito entre a autoridade, que é um valor sagrado na cultura católica dos portugueses, e a liberdade, que é um valor sagrado na cultura protestante dos países de onde Portugal importou o regime de democracia-liberal.
É este conflito cultural que não é novo em Portugal e que se repete quase um século depois. É preciso admitir: a menos que se encontre uma solução de equilíbrio entre liberdade e autoridade, é a democracia-liberal que está em risco, como já aconteceu no passado.
Em 1930, Portugal era governado por uma ditadura militar que em 1926 pôs termo ao regime de democracia liberal da I República. O primeiro-ministro era o general Domingos de Oliveira e o ministro das Finanças era Salazar. A 28 de Maio desse ano, num discurso a que já fiz referência, na sessão comemorativa do quarto aniversário da Revolução, Salazar escreveu a certa altura (ênfases meus):
"Porque as ditaduras bastas vezes nascem do conflito entre a autoridade e os abusos da liberdade, e vulgarmente lançam mão de medidas repressivas da liberdade de reunião e da liberdade de imprensa, confundem muitos ditadura e opressão. Não é isto da essência da ditadura e compreendida a liberdade (única noção para mim exacta) como a garantia plena do direito de cada um, a ditadura pode até, sem sofisma, suplantar sob esse aspecto muitos regimes denominados liberais".
(Oliveira Salazar, Discursos, vol. I (1928-34), Coimbra Editora, 5ª Edição, pp. 63-64).
Salazar tem uma concepção de liberdade, que é a concepção de liberdade católica a que fiz referência anteriormente (cf.
aqui), e que consiste em ninguém se poder atravessar no caminho dos direitos de cada um. A autoridade existe para garantir que ninguém, extravasando o seu próprio domínio de liberdade, invade o caminho dos outros. A autoridade é a condição
sine qua non da liberdade.
Convém ilustrar esta concepção de liberdade com situações tiradas da realidade portuguesa actual. Os portugueses têm o direito à educação dos seus filhos e, nos termos da Constituição, o Estado assume a responsabilidade pela satisfação desse direito.
Acontece que as escolas públicas não satisfazem plenamente esse direito pela falta de professores e pelas greves constantes, levando aqueles que podem - mas só aqueles que podem - a pôr os seus filhos em escolas privadas (cf.
aqui e
aqui). Quer dizer, os mais pobres, que são aqueles que mais necessitam da escola pública para educar os seus filhos, vêem o seu direito prejudicado porque várias corporações, em que sobressaem os sindicatos dos professores, se apropriaram da escola pública para promover os seus próprios interesses corporativos.
Para que ninguém se ponha no caminho do direito de cada português à educação - é esta a concepção salazarista e católica da liberdade - torna-se necessário restringir o poder dos sindicatos. Ora, a liberdade sindical é uma das liberdades fundacionais da democracia liberal pelo que a conclusão a tirar é a de que para satisfazer a liberdade católica de satisfação plena do direito à educação de todos os portugueses, é necessário sacrificar algumas liberdades protestantes (como a liberdade sindical).
O exemplo que dei para a educação vale igualmente para a justiça, a saúde e outros serviços públicos igualmente capturados por várias corporações, e que deixaram de satisfazer plenamente o direito das pessoas à justiça, à saúde, etc.
Salazar pensa sobretudo naqueles que não tendo poder organizativo para fazer parte de uma corporação, nem poder económico para procurar alternativas privadas aos serviços públicos, são os mais lesados com os abusos da liberdade por parte dos vários poderes corporativos. Salazar pensa sobretudo nos despoderados, aqueles cujo único poder são os seus direitos constitucionais, mas mesmo esse poder mínimo é prejudicado pelos excessos de liberdade dos poderes organizados.
Daí a sua conclusão, que parece paradoxal -, mas a cultura católica é uma cultura de paradoxos (cf.
aqui) - que vou reformular a seguir, retirando a palavra "ditadura" (que, na época, não tinha qualquer sentido pejorativo) e substituí-la por "autoridade".
A conclusão é a seguinte. Num país de cultura católica como Portugal, um regime autoritário pode ser mais liberal do que certos regimes ditos liberais (como a democracia-liberal).
Se, na realidade, é assim - e eu próprio já tinha chegado a essa conclusão (cf.
aqui) -, então são os portugueses que se sentem despoderados e oprimidos pela liberdade abusiva dos poderes organizados que, em primeiro lugar, chamam pela autoridade do Almirante Gouveia e Melo.
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