A nossa cultura é uma cultura de paradoxos e um dos autores que, no último século, melhor a compreendeu foi Chesterton que, vindo de fora, olhou para ela como quem entra numa casa pela primeira vez, e fica deslumbrado com tudo aquilo que lá existe. Ao passo que aqueles que lá nasceram, e sempre viveram nela, há muito que não reparam nessas coisas. Na realidade, depreciam-nas.
Talvez por isso, Chesterton ficou conhecido para a história do pensamento social como o Mestre do Paradoxo. Ele interiorizou de tal modo a nossa cultura - que não era a sua cultura original -, que ele próprio se tornou um paradoxo.
Num artigo muito simpático a meu respeito em baixo (cf. aqui), e que analisa muito bem o que se propunha analisar, o Rui Albuquerque termina numa nota de pessimismo. Na ausência de duas teorias da sociedade importadas - o liberalismo e o socialismo - aquilo que fica em Portugal é um deserto de ideias.
É sobre este ponto que eu não estou exactamente de acordo e para o qual gostaria de contribuir.
O liberalismo e o socialismo são teorias da razão. O portuguesismo, pelo contrário, é uma teoria do coração. Utilizo aqui o termo "portuguesismo", não para falar de uma teoria nacionalista qualquer, mas para falar da mais universal de todas as teorias - um paradoxo ao qual voltarei noutra ocasião.
É que o termo adequado e verdadeiro seria outro, mas afugentaria desde já metade dos leitores, e eu ainda só vou no quarto parágrafo. A aversão a esse outro termo, sobretudo quando mencionado em público é, de resto, o paradoxo dos paradoxos da nossa própria cultura e um paradoxo criado pelos intelectuais.
A teoria do portuguesismo, sendo uma teoria baseada no coração, e não na razão, é muito menos impressiva do ponto de vista racional do que as teorias do liberalismo ou do socialismo. Nestas, se A é maior que B e B é maior que C, então A é maior que C. Na teoria do portuguesismo, pode acontecer que a conclusão seja a de que C é maior que A.
A teoria do portuguesismo é uma teoria muito mais rebuscada e surpreendente do que o liberalismo ou o socialismo - e a surpresa está precisamente no paradoxo. Um exemplo, que vai aos fundamentos desta teoria: se eu olhar para um homem e para uma mulher (ou para dois homens), existe muito mais igualdade entre eles do que diferenças. No entanto, as diferenças são muito mais importantes do que a igualdade que existe entre eles.
A teoria do portuguesismo existe, e é muito mais rica e interessante do que as teorias do liberalismo e do socialismo. Nós é que nunca a quisemos desenvolver - e este é outro dos seus paradoxos. Porquê? Talvez por medo dos paradoxos que iríamos encontrar porque não é propriamente a coisa mais fácil deste mundo essa de racionalizar paradoxos. Ou talvez por medo que, uma vez racionalizada, ela seja destruída.
Limitar-me-ei aqui a apresentar algumas das suas traves principais, e a compará-las com as suas homólogas do liberalismo e do socialismo, sem qualquer preocupação de ser exaustivo.
Na teoria do portuguesismo o modo de relacionamento preferencial entre os seres humanos é o amor (em sentido lato), ao passo que no liberalismo é o interesse e no socialismo é o poder.
Na teoria do portuguesismo a unidade económica e social fundamental é a família, ao passo que no liberalismo é a o indivíduo e no socialismo é o Estado.
Na teoria do portuguesismo, a relação económica primordial é a dádiva, ao passo que no liberalismo é a troca e no socialismo é a imposição.
Na teoria do portuguesismo, a governação visa o bem-comum, ao passo que quer no liberalismo que no socialismo visa bens partidários ou sectoriais (v.g., os pobres, os empresários, etc.).
Estas são já traves suficientes para mostrar que existe uma teoria do portuguesismo, e ideias abundantes para desenvolver em torno delas, e talvez mais interessantes até do que aquelas que se podem desenvolver acerca do liberalismo e do socialismo.
PS. Já agora, para ilustrar a nossa cultura como uma cultura de paradoxos, em relação com a obra do Joãozinho e o julgamento a que estou a ser sujeito por causa dela - e que me tem ocupado neste blogue -, aqui vão dois paradoxos: 1) no processo judicial, o mecenas é que é o réu; 2) no julgamento, os réus estão a ser os acusadores.
2 comentários:
o paradoxo apenas é aparente
Só me espanta que o Rui A. tenha escrito como se não lesse este blogue desde 2007.
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