02 maio 2024

A Decisão do TEDH (144)

 (Continuação daqui)


O momento do crime


144. Umas nalgadas

A Cuatrecasas está no centro de um dos episódios mais engraçados do acórdão do TEDH, o qual põe em confronto a cultura provinciana e anti-democrática que prevalece nos tribunais portugueses - e à qual me tenho referido com frequência - com a cultura democrática que enforma a jurisprudência daquele Tribunal Europeu.

Não será exagerado dizer que a sentença de primeira instância do Tribunal de Matosinhos proferida pelo juiz João Manuel Teixeira é uma autêntica elegia à Cuatrecasas, algo que na altura eu deixei enfaticamente registado neste blogue (cf. aqui).

A Cuatrecasas é isto e aquilo, uma sociedade com notoriedade e sabe-se lá mais o quê (cf. aqui)... Ainda se fosse a sociedade de advogados Silva & Sousa ainda é como o outro... Agora, a Cuatrecasas é uma coisa especial, uma grande sociedade...  Sim, uma grande sociedade, mas não como a TAP ou a CGD... Essas ainda eu poderia ter ofendido à vontade porque pertencem ao domínio do povo... Agora, a Cuatrecasas, cuidado, é uma grande sociedade mas só do conhecimento da elite da sociedade portuguesa, os juristas, uma espécie de joia da coroa... E por aí adiante...

Na altura, eu fiquei surpreendido pela sentença do juiz João Manuel Teixeira, tanto mais que me condenava por ofensas à Cuatrecasas, mas absolvia-me das ofensas ao Rangel. E tanto mais surpreendido quanto é certo que uma sociedade não se pode ofender, uma sociedade é uma abstracção, uma construção jurídica, que não se ofende ou deixa de ofender, é como as estrelas do céu ou as conchas do mar. Só as pessoas se podem ofender. O próprio TEDH refere que o crime de ofensa a uma sociedade é discutível (cf. aqui, § 59).

Nos meses seguintes, procurei compreender a razão desta decisão do juiz João Manuel Teixeira e cheguei a uma tese que ainda hoje mantenho. A Cuatrecasas é uma sociedade muito grande em Portugal, com muitos advogados e muita influência na Ordem dos Advogados. Ora, da Comissão que faz a avaliação e a promoção dos juízes faz parte obrigatoriamente um representante da Ordem dos Advogados. Portanto, de forma explícita ou implícita, a Cuatrecasas terá feito chegar ao juiz a seguinte mensagem: "Ou condenas esse tipo ou nunca mais serás promovido na vida".

De regresso ao acórdão do TEDH. Nos parágrafos 49 a 72, O TEDH elenca os critérios que devem ser observados para que o direito à liberdade de expressão possa prevalecer sobre o direito à honra, e eu passo-os a todos nos parágrafos seguintes. Um dos critérios é o de saber se o destinatário dos comentários é uma figura conhecida, caso em que o direito à liberdade de expressão é ainda mais amplo.

Referindo-se à Cuatrecasas, diz o TEDH, no §75 (ênfase meu):

75. (...) As to the law firm C., the domestic courts characterised it as a very well renowned law firm (see paragraph 14 above).

e remete para um parágrafo anterior, que diz assim (ênfase meu)

14. Regarding the law firm C., the Matosinhos Criminal Court held it to be a very renowned law firm known for the quality and professional expertise of its lawyers and also for their sobriety, honesty and probity, and that the applicant knew that he would damage its credibility, prestige and trust, which he had indeed done, knowing that the statements made were false.

Quer dizer, enquanto o juiz João Manuel Teixeira invoca o facto de a Cuatrecasas ser uma sociedade de advogados muito conhecida para concluir que eu não a poderia ter criticado da maneira que fiz - a velha cultura do respeitinho -, os juízes do TEDH pegam-lhe precisamente na palavra para concluírem que, sendo uma sociedade muito conhecida, está sujeita a apanhar umas nalgadas ainda mais valentes do que se não fosse conhecida de todo.   

Tudo isto tem um fim muito triste. Tudo começa por eu ter ofendido a Cuatrecasas dizendo que ela produziu um trabalho que era uma palhaçada jurídica. Mas tudo termina de uma forma muito mais dramática, com a Cuatrecasas a organizar esta palhaçada judicial que culminou no TEDH e da qual o juiz João Manuel Teixeira, infelizmente, também faz parte.

(Continua acolá)

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