11 setembro 2018

Sentença (II)

(Continuação daqui)

II. Num erro de jurisprudência


Tendo-me absolvido do crime de difamação agravada ao Paulo Rangel, o juiz passa imediatamente ao crime de ofensa a pessoa colectiva. Este crime tem como acusador a própria Cuatrecasas (representada em Tribunal pelos advogados Adriano e Ricardo Encarnação). A Cuatrecasas reclama de mim uma indemnização de 50 mil euros e o crime tem uma pena que pode ir até 6 meses de prisão ou 240 dias de multa.

O juiz começa por anunciar que o caso da Cuatrecasas é diferente do do Paulo Rangel e a condenação começa a desenhar-se no horizonte:

Diz assim:

"Aqui, neste caso, já não estamos perante um homem político.
Por outro lado, a Cuatrecasas é uma empresa com notoriedade nos meios jurídicos, mas não numa visão global da sociedade. A população em geral, não relacionada com o mundo jurídico, não sabe que sociedade é esta. Por isso, não deve esta sociedade ser sequer colocada no mesmo âmbito de "uma figura pública". Não estamos a falar nem da TAP ou da CGD, que são conhecidas nacionalmente como uma qualquer estrela futebolística.
O âmbito de protecção é, por isso mesmo, diferente" .

Por outras palavras, a amplitude do direito à liberdade de expressão, que se aplica a uma figura pública como o Paulo Rangel, não vale para a Cuatrecasas, sendo mais restrita. Ou, visto do lado do ofendido, a amplitude do direito de protecção ao bom-nome é maior para a Cuatrecasas do que para o Paulo Rangel. Em suma, podem dizer-se coisas acerca do Paulo Rangel, que é uma figura pública, que não se podem dizer acerca da Cuatrecasas porque ela é escassamente conhecida na sociedade (*).

Tendo restringido aquilo que se pode dizer acerca da Cuatrecasas, relativamente àquilo que se pode dizer sobre um político como o Paulo Rangel, o juiz vai de seguida imputar-me afirmações acerca da Cuatrecasas que eu não poderia ter feito, e que são crime.

Antes, porém, de passar a este segundo ponto, gostaria de comentar o primeiro.

Será verdade que o direito à liberdade de expressão é mais restrito no caso de uma sociedade, como a Cuatrecasas, do que no caso de uma figura pública, como o Paulo Rangel?

O juiz diz que sim. Mas o Tribunal da Relação do Porto, que é quem vai julgar o recurso, diz que não. Diz que é igual:

"Este critério (em que o direito ao bom nome é preterido em favor da liberdade de expressão e de informação e, portanto, os limites da crítica aceitável têm uma amplitude maior que em outros âmbitos) aplica-se à actividade judicial, à actividade administrativa e a todas as pessoas (singulares ou colectivas) que têm uma função social de relevo"  (cf. aqui).

O Tribunal da Relação de Lisboa, seguindo igualmente a jurisprudência do TEDH, tem uma posição semelhante:

"4. A jurisprudência portuguesa sustenta claramente a necessidade de proteger o direito à liberdade de expressão e de opinão sobre a tutela do bom nome, in casu de uma empresa, na decorrência dos ensinamentos da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e do Tribunal Constitucional, valendo para organismos, serviços ou pessoas colectivas, incluindo empresas reputadas e conhecidas do público, o que aquela jurisprudência preconiza em relação a figuras públicas" (cf. aqui).

Quer dizer, a sentença condenatória assenta num erro de jurisprudência.

Não é nada bom sinal. É sinal de que cai pela base. É que se o juiz me absolveu por tudo aquilo que eu disse sobre o Paulo Rangel, deveria igualmente ter-me absolvido por aquilo que eu disse sobre a Cuatrecasas, em relação à qual fui bastante mais brando.

(Continua)
____________________

(*) A Cuatrecasas é uma das maiores sociedades de advogados do mundo e a segunda maior da Europa Continental.

Sem comentários: