IV. Tratando-se da Cuatrecasas
Admitindo, por um momento, que eu pronunciei as afirmações que o juiz me atribui, subsiste a questão: "E onde é que está a ofensa?".
É o terceiro ponto frágil da sentença, a seguir ao erro jurisprudencial (cf. aqui) e à atribuição que me é feita de afirmações que eu não proferi (cf. aqui), e decorre destes.
A explicação dada para a ofensa é a seguinte:
"Ora a liberdade de expressão não impede o arguido de qualificar profissionalmente os advogados da Cuatrecasas. Também não o impede de tecer comentários sobre a política de contratação de recursos humanos.
Mas o arguido atinge o elemento central de qualquer sociedade de advogados: a defesa dos interesses do seu cliente. É o elemento mais central do prestígio de qualquer advogado: que, em cada momento, está totalmente empenhado na defesa dos interesses do seu cliente. Não há ataque pior que se possa fazer, para o prestígio de um advogado, do que afirmar que se orienta não pela defesa dos interesses do cliente (sejam interesses legítimos ou ilegítimos, morais ou imorais) e que, ao invés, prossegue interesses diversos. Negar esta esfera de proteção da reputação da assistente, seria negar-lhe qualquer direito a qualquer reputação. Ora, os direitos fundamentais não se podem anular totalmente".
Perpassa por toda a sentença condenatória uma atmosfera de defesa corporativa dos advogados que são vistos como uma espécie de casta com privilégios especiais e isentos das regras a que se sujeitam quaisquer outros profissionais e cidadãos, nomeadamente as que respeitam à liberdade crítica de expressão.
A relação de lealdade entre o advogado e o seu cliente é um princípio que se aplica a todas as profissões, ao médico, ao economista ou ao engenheiro. Não é exclusiva do advogado. Como princípio, infelizmente, é muitas vezes violado e a Ordem dos Advogados, como qualquer outra Ordem profissional, há-de receber todos os meses dezenas de queixas sobre a violação deste princípio. Não é uma relação intocável. Pode ser livremente questionada e, em muitos casos, deve ser questionada, sob pena de o cliente incorrer em perdas graves (*).
Por outro lado, a expressão que aparece entre parêntesis, absolutizando ao extremo o princípio de lealdade entre advogado e cliente, permite toda a sorte de especulações, mesmo as mais ousadas: Então, se o cliente der instruções ao seu advogado para burlar ou matar o vizinho, o advogado vai executar o mandato?
A sentença prossegue insistindo em pôr na minha boca aquilo que eu não disse:
"Ao referir que a Cuatrecasas, em vez de proteger os interesses do Hospital de São João (seu cliente), produz documentos que prejudicam os interesses deste mas que beneficiam os interesses políticos de terceiros (a mão que lhe dá de comer), o arguido extravasa os limites da liberdade de expressão. A liberdade de expressão tem de ter um conteúdo, mas também não vale tudo. E o arguido sabe-o bem".
Quanto a extravasar (ou não) os limites da liberdade de expressão é assunto que já comentei (cf. aqui). Mas quantas vezes tenho agora de proclamar que não referi aquilo que me é atribuído? Mais do que uma, certamente, porque logo a seguir o juiz volta a imputar-me afirmações que eu não proferi:
"E o arguido sabia da falta de veracidade destes factos que imputava: que a Cuatrecasas, propositadamente, produzia documentos contra os interesses do Hospital de S. João para beneficiar uma terceira 'mão que lhe dá de comer'".
Seguem-se algumas considerações de natureza técnico-jurídica e o desfecho que se anunciava desde o início:
"O arguido praticou, assim, um crime de ofensa a pessoa colectiva, p.p. pelas disposições conjugadas dos artºs 187º, nºs 1 e 2, al a), este último por referência ao artº 183º, nº 2, todos do Cód. Penal, perpetrado contra a sociedade e assistente Cuatrecasas".
Em suma, eu fui condenado porque
(i) com base em afirmações que o juiz me atribuiu mas que eu nunca proferi,
(ii) pus em causa a relação de lealdade entre advogados e os seus clientes,
(iii) algo que, tratando-se da Cuatrecasas, eu não tenho liberdade (de expressão) para fazer.
Deduz-se da sentença que, se fosse a Caixa Geral de Depósitos ou a TAP, eu teria sido absolvido (cf. aqui).
(Continua)
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(*) São frequentes os casos de advogados que falham a relação de confiança para com os seus clientes (p. ex., aqui e aqui), como em qualquer outra profissão.
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