30 março 2024

A Decisão do TEDH (50)

(Continuação daqui)



50. O carácter sagrado da liberdade

O acórdão do TEDH tem 105 parágrafos (cf. aqui). Mas se eu tivesse de escolher o meu preferido, não hesitaria um segundo. É o parágrafo 62. É este parágrafo que exprime de forma sucinta aquilo que há de melhor na cultura protestante (por oposição à nossa cultura católica de portugueses), que criou a democracia política:

62.  Freedom of expression constitutes one of the essential foundations of a democratic society and one of the basic conditions for its progress and for each individual’s self-fulfilment. Subject to paragraph 2 of Article 10, it is applicable not only to “information” or “ideas” that are favourably received or regarded as inoffensive or as a matter of indifference, but also to those that offend, shock or disturb. Such are the demands of pluralism, tolerance and broadmindedness without which there is no “democratic society” (...)

Já mencionei uma dessas dimensões (cf. aqui) ao enfatizar a afirmação de que a liberdade de expressão vale não somente para as ideias favoráveis, inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ofendem, chocam ou inquietam.

Por outras palavras, a democracia releva de uma cultura viril, uma cultura masculina, como é o protestantismo, centrada na figura de Cristo. A democracia não é para donzelas, para pessoas que se ofendem facilmente, como acontece no catolicismo, uma cultura feminina, centrada na figura de Maria.

Refiro-me agora a outra expressão contida no parágrafo 62, "... for each individual's self-fulfilment" para a qual não existe uma tradução fácil e curta em português, de tal maneira a ideia que ela representa é alheia à nossa cultura católica. Literalmente, traduz-se por  "... para o auto-preenchimento de cada indivíduo", mas eu decidi traduzi-la por "... para que cada pessoa possa prosseguir os fins que se propõe na vida" (cf. aqui).

A expressão reflecte o chamado individualismo protestante, por oposição ao comunitarismo católico.

No protestantismo, cada indivíduo é chamado, ele próprio, a definir o seu caminho para Deus. Para tanto, precisa de liberdade, e daqui decorre o carácter sagrado da liberdade. 

Vale a pena enfatizar este ponto. A liberdade, que toda a gente em Portugal e em muitos outros lugares invoca como um valor abstracto e sem saber muito bem para que serve, possui na sua origem do cristianismo protestante um valor sagrado. É Deus que quer dar  liberdade ao homem para que ele livremente decida como quer chegar a Ele. É devido ao seu carácter sagrado que a ideia triunfou na civilização.

Que coisa tão estranha, argumentará um católico, isto de cada um escolher o seu próprio destino porque, para o catolicismo, cada pessoa (o equivalente católico do indivíduo) está ao serviço da Comunidade (Igreja), é ela que lhe define e lhe indica o caminho para Deus. Cada pessoa faz parte do chamado "Rebanho de Deus". Ou vão todos ou não vai ninguém, agora cada um por si é que não.

Na teologia católica, a liberdade é a fonte de todos os pecados - um indivíduo sabe lá definir o seu próprio destino, isso é algo que só a  Igreja sabe e lhe vai ensinar. Um indivíduo com liberdade só vai fazer asneiras. A liberdade é o diabo (cf. aqui).

Traduzindo para o campo político, a cultura protestante é uma cultura de cidadãos, de pessoas afirmativas, que sabem o que querem da vida. Pelo contrário, a cultura católica é uma cultura de súbditos, de pessoas falhas de auto-estima, sempre à espera que lhes digam o que hão-de fazer com a sua própria vida. A cultura protestante reclama por um regime político democrático, a cultura católica reclama por regime político autoritário. 

Não é por acaso que a sentença do Tribunal da Relação do Porto, que me condenou, foi redigida por um juiz que é um católico empedernido (cf. aqui).

(Continua acolá)

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