18 dezembro 2022

Um juiz do Supremo (188)

 (Continuação daqui)



188. A cumplicidade do silêncio

Eu chamei-lhe leniência (cf. aqui), mas o antigo bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho e Pinto, muito antes de mim, tinha sido mais radical ao afirmar o princípio vigente em Portugal de que "juiz não julga juiz" (cf. aqui). É este princípio corporativo que torna possível a criminalidade judicial em Portugal 

Segundo a acusação da Operação Lex, o juiz Rui Rangel vendeu sentenças durante muitos anos até ser parado, o mesmo acontecendo com a sua esposa, e quanto ao juiz Marcolino que, desde há muitos anos também,  leva uma vida pública de criminalidade reiterada e ostensiva, esse, não só nunca foi parado, como foi recentemente promovido a juiz do Supremo.

Neste post, analiso a cultura corporativa dos portugueses, como uma subproduto da sua cultura católica, e os extremos a que o corporativismo pode levar, no sentido de explicar por que é que a profissão judicial é tão eficaz a abrigar criminosos. 

A conclusão a que chego é que juízes, como Rangel e Marcolino, não poderiam ser os autores de uma criminalidade continuada durante tanto tempo - e, no caso do juiz Marcolino, numa espécie de "prémio", ainda por cima aceder a juiz do Supremo -, se não fosse a cumplicidade de outros membros da sua profissão e, em particular, do Conselho Superior da Magistratura, que é suposto ser o órgão de disciplina dos juízes.

Portugal é um país de cultura profundamente católica e o nome da instituição que enformou essa cultura - a Igreja Católica -, significa, do grego, "comunidade universal". Seguindo o princípio cristão de que todos os homens são filhos do mesmo Pai, a Igreja é a Mãe - a Santa Madre Igreja - que pretende unir toda a humanidade numa só família.

A família é, portanto, a instituição central da cultura católica e é com base nos valores prevalecentes na família que a Igreja procura organizar todas as outras instituições da sociedade. Esses valores são a autoridade, a hierarquia, a lealdade e a solidariedade. São esses valores também que se encontram nas corporações, que são associações de interesses, de natureza profissional ou outros.

Na sua história recente, Portugal tem uma forte tradição corporativa. Salazar construiu o Estado Novo como um Estado Corporativo, seguindo as orientações da Encíclica Quadragesimo Anno (1931) do Papa Pio XI. Mas Salazar teve também o cuidado de criar instituições que regulavam o poder corporativo e o continham. O Ministério das Corporações era uma delas, mas a mais importante de todas era a Câmara Corporativa, uma invenção genial.

A democracia veio acabar com estas instituições e deixou as corporações à solta, uma situação particularmente perigosa na justiça, especialmente entre os juízes, tendo em conta o poder que eles têm numa sociedade democrática, em que se constituem como poder autónomo em relação aos outros poderes do Estado. É esta liberdade dada pela democracia à corporação judicial que explica que nós possamos encontrar hoje verdadeiros criminosos entre os juízes dos mais altos tribunais do país.

A cultura católica é uma cultura que estimula a família e as corporações, mas é também uma cultura que, podendo levar tudo ao extremo, apela constantemente ao equilíbrio. E o que são os valores da família levados ao extremo, o que é que acontece se os valores da autoridade, da hierarquia, da lealdade e da solidariedade forem tomados como absolutos e levados às suas últimas consequências? O que é que acontece se o pai da família ou algum dos seus filhos se tornar um criminoso e em, em nome desses valores, ninguém na família o denunciar, remetendo-se todos ao silêncio?

Acontece a máfia. A máfia é a instituição da família levada ao extremo. A máfia existe para mostrar à humanidade o que é que acontece se os valores prevalecentes na família - autoridade, hierarquia, lealdade e solidariedade - forem levados ao exagero. A máfia existe para mostrar como é que, pelo exagero, a mais preciosa instituição da humanidade se converte na mais horrorosa instituição da humanidade.

Não é por acaso que a máfia é frequentemente designada por "famiglia", e que o chefe da máfia é designado por "padrinho", uma versão do pai de família. E, sobretudo, não surpreende que a máfia tenha nascido no país que é a sede da cultura católica - a Itália. Se não fosse em Itália, a máfia só poderia ter nascido em mais dois outros países, Espanha e Portugal (ou em qualquer um dos seus respectivos descendentes na América Latina: Argentina, México, Brasil, etc.).

Quando Marinho e Pinto falava do princípio segundo o qual "juiz não julga juiz", ele provavelmente não reparou que não era somente dentro da corporação judicial que isso acontece. Na máfia também, "mafioso não julga mafioso". Na realidade, a primeira coisa que um aprendiz de mafioso aprende é que pagará com a vida o julgamento público - a denúncia - de qualquer membro da sua corporação.

Levados ao extremo, os valores da família que animam a corporação, desembocam na máfia, e naquilo que mais caracteriza a máfia - o silêncio cúmplice dos seus membros perante os crimes mais horrendos. É esta cumplicidade mafiosa da corporação judicial - uma cumplicidade do silêncio - que conduziu à situação actual na justiça, e que deixa boquiaberto qualquer cidadão português - há criminosos entre os juízes dos mais altos tribunais do país.


(Continua)

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