22 novembro 2022

Um juiz do Supremo (114)

 (Continuação daqui)



114. Os traficantes de Bragança

Foi na primeira década deste século, era o tempo da governação de José Sócrates, a liberdade e a globalização chegavam finalmente às mais remotas vilas e aldeias de Portugal. As terras do interior, abafadas durante séculos pela falta de comunicações, eram agora atravessadas por modernas auto-estradas que as ligavam aos principais centros do País, da Península Ibérica e mesmo da Europa.

Para quem fosse oriundo de algum desses lugares remotos de Portugal, tivesse algum poder local - fosse ele empresarial, político ou judicial -, fosse militante do PS e, de preferência, próximo de José Sócrates, os horizontes pareciam não ter fim, o céu era o limite, tudo era possível.

Esta foi a década em que, de uma das mais recônditas vilas de Portugal - Vinhais e numa aldeia próxima, Parada, também no distrito de Bragança - emergiram três dos mais conhecidos traficantes do país que viriam a tornar-se, todos eles  figuras públicas, todos eles conhecidos internacionalmente.

Duarte Nascimento Rodrigues, também conhecido por Duarte Lagarelhos, o nome de uma freguesia do concelho de Vinhais, foi o principal financiador de uma rede de tráfico de droga (ecstasy) que, de Vinhais, se estendeu a Espanha e chegou mesmo aos Estados Unidos da América. Era sócio do juiz Francisco Marcolino, através da mulher deste, numa imobiliária em Bragança, a Imobiliária de São Bartolomeu.

Duarte Lagarelhos foi preso em 2003 (cf. aqui), um ano decisivo na vida do juiz Marcolino. Um dos traficantes, apanhado nos EUA, disse ao FBI que Duarte Lagarelhos lhe confiava estar protegido nos seus negócios ilícitos por um juiz de Bragança, identificado nos autos como judge Marehlino (cf. aqui). Outros traficantes da rede, perante as autoridades nacionais, disseram o mesmo, referindo-se diversamente ao juiz Marcolino como Marcelino ou Mercolino. É o momento da internacionalização do juiz Marcolino, a par do seu sócio Duarte Nascimento Rodrigues.

Por essa altura, mais ano menos ano, mas sempre na mesma década, Armando Vara, também oriundo de Vinhais, e mais precisamente de Lagarelhos - poderia ter até tido, como o seu conterrâneo, a alcunha de Armando Lagarelhos - traficava favores por todo o país junto de empresas públicas e outras instituições do Estado, em benefício de um empresário do distrito de Aveiro, de nome Manuel Godinho, dono de 11 empresas e conhecido pela alcunha de O Sucateiro de Ovar.

Nos intervalos do tráfico de influências, Armando Vara pode ter dado uma mão ao juiz Francisco Marcolino, seu amigo de infância, e como ele, um socratista convicto, na candidatura do juiz em 2005 à Câmara de Bragança pelo PS. A ajuda terá valido pouco, talvez pelo terror que nessa altura o juiz já inspirava na população da cidade. 

O juiz perdeu por uns humilhantes 27% contra os 63% do seu opositor do PSD, Jorge Nunes, um engenheiro de profissão, aquele mesmo que poucos anos antes andava a explicar à revista TIME a razoabilidade das reivindicações das mães de Bragança face às meninas brasileiras (cf. aqui), e que pouco tempo depois seria alvo de um processo por parte do juiz Marcolino onde este lhe reclamava uma indemnização de 40 mil euros e outra de 25 mil à Câmara de que era presidente, tudo por causa do estacionamento do avião do juiz no aeródromo da cidade. 

O traficante Armando Vara acabou na prisão em 2019 depois de o seu amigo Francisco Marcolino ter feito tudo o que lhe era possível para ver se o safava e, não tendo conseguido, mesmo assim envidado todos os esforços para lhe diferir o cumprimento da pena o mais possível, o que acabou por conseguir.

O terceiro traficante, oriundo do distrito de Bragança, é o próprio juiz Marcolino, e a sua especialidade é o tráfico de sentenças judiciais. Quando a década terminou, ele tinha nada mais nada menos que oito processos judiciais contra terceiros no Tribunal de Bragança, onde ele próprio tinha sido juiz até ao final da década anterior. Todos os processos envolviam o pedido de indemnizações cíveis (cf. aqui). É que ele tinha agora um avião para sustentar, os custos de manutenção a aumentarem e o preço da gasolina a subir. O vencimento de juiz-desembargador no Tribunal da Relação do Porto não chegava para tanto.

Como os processos nunca mais fossem decididos, e o juiz Marcolino a precisar urgentemente de dinheiro, pediu ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) que o nomeasse inspector judicial em Bragança, onde ele iria avaliar os juízes que decidiriam os processos em que ele próprio estava envolvido, bem como as respectivas indemnizações. 

Um juiz de Bragança decidiu a seu favor um processo envolvendo uma indemnização de 25 mil euros, tendo obtido muito boa nota do inspector Marcolino; outros dois pediram escusa dos processos, até que rebentou a bronca. O juiz Marcolino utilizava as suas funções judiciais para extorquir os arguidos através das pressões que exercia sobre os juízes. 

E foi preso, que é isso que o Código Penal prevê para o crime de extorsão, ainda que na forma tentada? Não. O CSM considerou que tinha havido uma mera falta disciplinar (violação do dever de lealdade), aplicou-lhe uma multa de dez dias de vencimento, suspendeu-o de funções e mais tarde despediu-o, tudo isto discretamente, fazendo-o regressar ao Tribunal da Relação do Porto. 

A origem destes três traficantes, todos conhecidos internacionalmente, é, portanto, a mesma - a pacata vila de Vinhais, sede de concelho no distrito de Bragança, e Parada, também no distrito de Bragança, província de Trás-os-Montes, a primeira uma vila com cerca de dois mil habitantes, mesmo ao norte do país, a fazer fronteira com a Espanha.

A origem é a mesma - o distrito de Bragança. O destino é que foi diferente. Dois deles acabaram na prisão. O outro acabou a juiz do Supremo.


(Continua acolá)

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