22 novembro 2022

Um juiz do Supremo (113)

 (Continuação daqui)



113. Tráfico de influências


Como é que o primeiro político condenado por tráfico de influências em Portugal vem de Lagarelhos, concelho de Vinhais, Bragança, e o juiz desembargador do Tribunal da Relação do Porto, que o tenta safar a todo o custo, traficando em decisões judiciais -, também vem de Vinhais, Bragança, sendo seu colega de escola, velho amigo e correlegionário do PS?

Embora o tráfico de influências possa ocorrer em qualquer sociedade, de qualquer cultura e tamanho, ele é mais frequente e faz parte da cultura das pequenas comunidades fechadas, onde o mercado não existe como mecanismo de afectação dos recursos, a economia é predominantemente de troca e a circulação do dinheiro é escassa. É normal que as coisas se troquem por favores. É esta a cultura em que nasceram e cresceram Armando Vara e o juiz Marcolino. Para eles, o tráfico de influências é tão normal como o almoço e o jantar todos os dias. 

Mesmo depois de sair da prisão, Armando Vara mostrava-se genuinamente surpreendido por ter sido preso. "Estive a cumprir uma pena por crimes que não cometi" (cf. aqui), garantia ele aos jornalistas, e a indignação era genuína, como quem pergunta: "Mas, então, isso não é normal, um homem importante como eu cobrar pelos favores que presta? Julgavam que era de borla!?".

É a mesma indignação que encontramos no juiz Marcolino quando lhe chamam corrupto (cf. aqui). "Mas então não é normal, um juiz como eu [na altura, desembargador], com o poder que tenho de meter qualquer um na prisão, traficar processos judiciais, decidir a favor da minha mulher, sacar dinheiro em indemnizações em processos que ponho aos inimigos e até aos amigos!? Mas já chegámos a esse ponto, em que o poder, que custou tanto a conquistar, não vale nada!? Era melhor...!" 

Como já referi noutro lugar (cf. aqui), numa comunidade assim, em que o mercado não existe como mecanismo de afectação dos recursos, a única maneira de um homem, que não tenha nascido rico, se tornar rico, é acedendo a uma posição de poder. A partir daí pode extorquir os seus conterrâneos com a ameaça do exercício do poder, ou simplesmente mercadejando em favores: "Queres que eu te apresente a fulano ou a beltrano para fazeres negócio ou para que ele dê emprego à tua filha?". A pergunta contém um complemento implícito: "Claro, um dia vais ter de pagar".

O tráfico de favores ou influências é um negócio corrente nas pequenas comunidades, e um negócio de dinheiro fácil porque o produto consiste em conhecimentos pessoais e em palavras, e de onde não desaparece por completo a economia de troca directa, em que os favores se pagam com favores. 

O dinheiro fácil, proveniente do tráfico, parece ser uma atracção em Bragança precisamente porque o dinheiro é escasso numa pequena comunidade fechada e pobre.  No triunvirato que o juiz Marcolino forma com os seus amigos de Lagarelhos (cf. aqui), todos traficam em alguma coisa, Armando Vara trafica em influências, Duarte Rodrigues trafica em droga, o juiz Marcolino trafica em sentenças judiciais. Dos três, o juiz é o único que ainda não foi para a prisão, talvez pela natureza do produto em que trafica. 

Não é fácil descrever o choque cultural que é para estes homens - que cresceram, se tornaram importantes e enriqueceram num meio fechado e provinciano - a experiência do seu contacto com uma sociedade livre e aberta, uma economia de mercado, onde a influência cede o lugar ao mérito e à qualidade do produto, onde o pagamento é em dinheiro, e não em géneros ou favores, e a concorrência é por vezes feroz.

Não existe, talvez, melhor maneira de descrever este choque cultural do que recorrendo a um case-study que teve precisamente lugar em Bragança, tendo ficado conhecido como Braganza Mothers, e que fez a capa da revista TIME. Foi a tentativa de liberalização do mercado do sexo em Bragança há cerca de 20 anos.

Meninas brasileiras invadiram Bragança para concorrerem com as mulheres da cidade, um acontecimento que foi descrito na mais divertida peça jornalística que alguma vez se escreveu sobre Bragança, e onde o choque cultural é patente. A peça da TIME tem o título: "When the meninas came to town" (cf. aqui).

Na concorrência do mercado ganharam as meninas, até porque muitas das mães de Bragança - ao que se dizia na altura (cf. aqui) - iam para o leito conjugal com os seus respectivos maridos com as mãos a cheirar a cebola do refogado que tinham feito para o jantar.

Apesar das vantagens competitivas das brasileiras, no fim, porém, triunfaram as mães de Bragança que, movendo influências junto das autoridades locais e mesmo nacionais, incluindo o governo do país, conseguiram expulsar as meninas brasileiras da cidade (cf. aqui).


(Continua acolá)

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