30 julho 2022

Santa Madre Igreja



Não demorou muito tempo até que fosse confirmada a tese que exprimi noutro post, a saber, que nas circunstâncias actuais,  dá jeito à Igreja Católica ter um juiz como seu homem de mão (cf. aqui).

No mesmo dia em que o cardeal patriarca, D. Manuel Clemente, veio a público defender-se das imputações de que encobriu um pedófilo no seio da Igreja (cf. aqui), o juiz Vaz Patto veio a público defender o cardeal (cf. aqui).

Foi uma inovação ver um juiz a fazer um julgamento em público, não podendo os juízes, a partir de agora, queixar-se da justiça que é feita na praça pública porque eles próprios - na pessoa do juiz Vaz Patto - dão o exemplo e estabelecem o precedente.

O veredicto não é surpreendente. O réu sai absolvido. Não há nada de mal que se possa imputar ao cardeal por não ter denunciado um padre pedófilo às autoridades judiciais. Porquê? Porque não existe lei que a tal obrigue.

O argumento absolutório é impressionante pelo seu legalismo, como se a vida fosse feita exclusivamente ou sequer maioritariamente por obrigação legal. O próprio juiz Vaz Patto não existiria nesse mundo porque não se conhece lei que tenha obrigado os seus pais a fazer o que fizeram

Aquilo que decorre da sentença do juiz Vaz Patto é que, quando alguém tiver conhecimento de um crime, por mais hediondo que seja, e ainda que já tenha prescrito, não o deve denunciar às autoridades judiciais, deixando o criminoso à solta para que ele vá fazer a mesma coisa a outras pessoas.

Não é a primeira vez que o juiz Vaz Patto vem amenizar os crimes de pedofilia cometidos no seio da Igreja Católica. Num artigo de Novembro passado, também no Observador (cf. aqui), invoca a sua qualidade de juiz, reclamando uma certa expertise sobre o tema da pedofilia [o juiz Vaz Patto é especialista em muitas matérias, em pedofilia, mas também em prostituição, cf. aqui] para normalizar ou banalizar os crimes de pedofilia cometidos por padres. Por duas vezes no artigo, ele diz que não pretende relativizar os crimes de pedofilia cometidos no seio da Igreja, mas é isso, de facto, que ele faz.

Segundo o juiz, a pedofilia existe por todo o lado  e em todas as camadas sociais e, portanto, não é surpreendente que também exista no seio da Igreja. Segue-se que a pedofilia na Igreja é tão grave quanto a pedofilia praticada no seio de qualquer outra instituição, como a família, a Casa Pia, ou uma qualquer agremiação desportiva.

Mas não é. No seio da Igreja, a pedofilia é um crime agravado, porque a Igreja se apresenta ao público como uma instituição santa - Santa Madre Igreja - ao passo que nenhuma outra instituição se apresenta na sociedade com pretensões de santidade. As crianças entregues aos cuidados da Igreja são entregues a uma instituição santa e a pessoas que são santas ou têm pretensões de santidade. O crime de pedofilia é, neste caso, agravado, porque a confiança pública na Igreja também é maior do que em qualquer outra instituição que acolhe crianças.

A condição de juiz invocada pelo autor pode enganar o leitor. Na verdade, sabendo que ele é juiz, qualquer leitor presumirá que ele se pronuncia com a independência de espírito e a imparcialidade que são os atributos mais importantes e próprios de um verdadeiro juiz.

Mas não é esse o caso. Ele também é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz - o braço laico da Conferência Episcopal Portuguesa -, e, nessa qualidade, ele é um porta-voz oficial da Igreja Católica. Quando se pronuncia sobre a Igreja Católica, o juiz Vaz Patto não tem nem independência nem imparcialidade, renunciando aos dois atributos que são distintivos da sua profissão de juiz.

Os julgamentos dele na praça pública sobre a pedofilia na Igreja não têm, por isso, valor nenhum. Ele julga em causa própria e faz, portanto, a figura de um batoteiro. Não é a primeira vez (cf. aqui).

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