14 novembro 2020

Um juiz à solta (XII)

 (Continuação daqui)



XII. Um batoteiro

A questão com que terminei o último post desta série, a saber, se, em caso de conflito entre a Constituição e o Catecismo, a quem é que o juiz Vaz Patto será leal, à Constituição ou ao Catecismo, é uma questão crucial na história do catolicismo e do seu embate com a modernidade liberal.

A modernidade liberal tem a sua origem mais remota em Inglaterra e na Magna Carta onde, pela primeira vez, o poder dos cidadãos se afirma perante o poder do Estado absoluto. A monarquia absoluta então prevalecente na Europa Ocidental era o regime político de inspiração católica que replicava à escala da nação a organização política do Vaticano. (Hoje, ao contrário de então, o Vaticano permanece solitariamente a única monarquia absoluta entre os Estado ocidentais ou cristãos).

A modernidade liberal acabou por triunfar e se consolidar em Inglaterra com a Revolução Gloriosa de 1688-9 (cf. aqui), que não foi apenas uma guerra civil, mas também uma guerra religiosa, uma guerra em que o protestantismo triunfou sobre o catolicismo. O Estado liberal triunfava sobre o Estado absoluto, daqui saindo outro documento histórico da tradição liberal inglesa - "The Bill of Rights" - ao mesmo tempo que o protestantismo triunfava sobre o catolicismo.

Nos séculos que se seguiram o catolicismo esteve proibido em Inglaterra (o que não deixa de ser irónico - o regime político da liberdade não conceder liberdade aos católicos). Um dos argumentos principais usados para esta proibição foi o argumento de que não se podia confiar nos católicos.

Os protestantes eram leais ao Rei, que era também o chefe da Igreja Anglicana, ao passo que os católicos tinham duas lealdades - ao Rei e ao Papa. Em caso de conflito, os católicos seriam leais a quem? No caso de prevalecer a lealdade ao Papa, a Inglaterra seria governada a partir de fora e não pelo Rei que era o representante legítimo do povo inglês.

Esta dupla lealdade ao Chefe de Estado e ao Papa é apenas uma manifestação de um traço da cultura católica ou latina que leva aqueles que são exteriores a esta cultura a olhar os católicos ou latinos com desconfiança. 

Nunca se sabe ao certo onde está a sua lealdade, se num lado ou no outro, eles tão depressa invocam a sua lealdade ao Estado como à Igreja, à Constituição como ao Catecismo, consoante mais lhes convém e  normalmente em proveito próprio. Não se pode confiar neles, tão depressa jogam segundo um conjunto de regras como procuram fugir a essas mesmas regras invocando outras. São uns batoteiros (cheaters).

Um episódio significativo ilustra este choque entre a cultura protestante e a cultura católica e a merecida reputação que os católicos ou latinos têm aos olhos dos protestantes. Em 1982, a Inglaterra, sob o comando da senhora Thatcher, foi valentemente à Argentina defender aquilo que era seu e ganhar a guerra das Malvinas.

Quatro anos depois, a Inglaterra e a Argentina encontraram-se nos quartos de final do Campeonato do Mundo de Futebol no México. Desta vez, a Argentina dispunha de uma grande trunfo sobre a Inglaterra. Chamava-se Diego Maradona, considerado o melhor jogador do mundo. Compreensivelmente, para além da rivalidade desportiva, havia muita emotividade em redor do jogo. A vingança pairava no ar. E concretizou-se, a Argentina ganhou o jogo.

O primeiro golo da Argentina, que acabou por ser decisivo porque o resultado final foi 2-1, ficou célebre porque foi marcado com a mão por Maradona. O guarda-redes inglês, Peter Shilton, e vários companheiros protestaram com veemência, mas de nada valeu, porque o árbitro validou o golo. No final do jogo, Maradona ainda troçou dos adversários dizendo que o golo tinha sido marcado com "a mão de Deus" (cf. aqui).

A Argentina ganhou com batota, nada que devesse surpreender os ingleses porque a batota vinha de um país fortemente católico e, na sua história, os ingleses conheciam bem esta faceta dos católicos.

Quem nunca perdoou a batota a Maradona foi Peter Shilton. Anos depois, quando se retirou dos relvados, Shilton convidou para a sua festa de homenagem os melhores jogadores do mundo, mas deixou ostensivamente de fora o melhor de todos eles - Maradona. Ele não conseguiu adaptar-se à ideia de ter de conviver na sua festa de homenagem com um batoteiro (cf. aqui).

(Continua)

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