20 dezembro 2020

O último recurso (IV)

 (Continuação daqui)



IV. A interpretação das leis

Mais de metade do texto do recurso que o advogado Ferreira Alves enviou para o Tribunal Constitucional, em minha representação, na passada sexta feira, a fim de contestar o despacho da juíza Rangel - o qual me nega o acesso ao Plenário -, é constituído por citações da jurisprudência do TEDH acerca do direito de acesso a um tribunal

E porquê esta preocupação, que às vezes parece uma obsessão, do advogado Ferreira Alves, em invocar a jurisprudência do TEDH quando contesta as decisões dos tribunais nacionais?

-Está a preparar a argumentação para ganhar facilmente a causa no TEDH.

Na realidade, se o processo Almeida Arroja c. Portugal (cf. aqui) vier a ser apreciado pelo Tribunal Europeu, os juízes do TEDH já têm o trabalho todo feito e não necessitam de ir verificar se, a respeito de cada queixa por violação da CEDH, a jurisprudência do TEDH foi ou não violada.

Claro que foi, basta consultar as peças processuais onde, pelo lado da defesa, a jurisprudência do TEDH foi sempre invocada para contestar as decisões (injustas) dos tribunais nacionais. 

É isto que explica, talvez, o enorme êxito que o advogado Ferreira Alves tem tido, desde há muitos anos, a fazer condenar o Estado português (leia-se: a justiça portuguesa) no TEDH (cf. aqui). 

Quando conheci o advogado Ferreira Alves, em Abril de 2019, depois da decisão do Tribunal da Relação do Porto (cf. aqui), eu próprio estava convencido que o meu case-study era um caso simples, um verdadeiro caso de escola, como então lhe chamei (cf. aqui).

Porém, dada a experiência do advogado Ferreira Alves, não deixei de lhe perguntar qual a probabilidade de sucesso que ele atribuía  a este caso no TEDH. A resposta dele, que deixei então  registada neste blogue, foi: 99.9%. (cf. aqui). Creio que se lhe fizesse a mesma pergunta hoje,  a probabilidade subiria para 99.999%.

O advogado Ferreira Alves nem sempre se limita, porém, a citar a jurisprudência do TEDH nas suas contestações às decisões dos tribunais nacionais. Também invoca as leis portuguesas, como aconteceu na reclamação ao despacho da juíza Rangel.

Em Portugal existem leis para tudo, incluindo leis que prescrevem como se devem interpretar as leis. A existência de leis para tudo é um dos males da tradição jurídica portuguesa, sobretudo quando as leis, que são normas imperativas, não têm penalidades previstas para o seu incumprimento. Tornam-se então leis perfeitamente inócuas, estão nos códigos mas não servem para nada.

As leis que regulam a interpretação das leis têm em vista impedir que juristas trapaceiros façam batota e ponham na boca da lei aquilo que a lei não diz. É que a juíza Rangel, no despacho que indefere o meu pedido de acesso ao Plenário do Tribunal Constitucional, põe na boca da lei aquilo que a lei não diz.

A lei relevante é o artº 79º-D, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, que diz assim:

"1. Se o Tribunal Constitucional vier a julgar a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma, por qualquer das suas secções, dessa decisão cabe recurso para o plenário do Tribunal, obrigatório para o Ministério Público quando intervier no processo como recorrente ou recorrido" (cf. aqui)

Em nenhum momento a lei exige que o primeiro dos acórdãos divergentes tenha transitado em julgado, como pretende a juíza Rangel (cf. aqui).

Em Portugal, a lei que regula a interpretação das leis é o artº 9º do Código Civil (cf. aqui) que no seu nº 2 diz assim (ênfase meu):

"2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso"

Também com base nesta lei, o advogado Ferreira Alves critica a decisão da juíza Rangel e chama a atenção de que ela está a cometer uma injustiça e uma discriminação, negando-me a mim (pelo acórdão 646/2020 e pelo despacho em apreço) um direito constitucional que o Tribunal Constitucional reconhece aos guardas da GNR (pelo acórdão 31/2020).

Escreve o advogado (ênfase meu):

"Portanto, a norma atrás [artº 9º, nº 2 do Código Civil] foi violada.

 E ainda, se do acórdão do recorrente não se pudesse recorrer, corria-se o risco de o recorrente actual se confrontar com um acórdão do Plenário que decidia sobre a mesma questão, mas em sentido totalmente diverso, o que seria um absurdo, pois a lei é geral e abstracta, igual para todos e violava o princípio da segurança jurídica, portanto, o artigo 6º, nº, 1, e 14º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nos termos já referidos nas alegações anteriores".

Quer dizer, se eu tiver de cumprir o acordão 646/2020 de 16 de Novembro, de que foi relatora a juíza Rangel, e o despacho da juíza Rangel de 9 de Dezembro, eu vou ter de cumprir a pena que me foi fixada pela Relação. Pelo contrário, os guardas da GNR - que estão na mesma situação -, vão poder recorrer para o Supremo (onde certamente serão absolvidos), embora esse direito constitucional esteja ainda sujeito a confirmação pelo Plenário do Tribunal Constitucional.

A conclusão é a de que aquilo que o Tribunal Constitucional, pela mão da juíza Rangel, quer a todo o custo é que eu seja condenado, deixando a porta aberta a que os guardas da GNR, que estão na mesma situação do que eu, possam ser absolvidos.

Agora, não é apenas o direito de acesso a um tribunal previsto no artº6º, nº 1, da CEDH que está em causa. Está em causa também o artº 14º que proíbe a discriminação (cf. aqui).  

(Continua)

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