16 maio 2020

O chico-esperto e a justiça



Há cerca de seis anos, eu tinha acabado de publicar um livro com o título "F. - Portugal é uma figura de mulher" em que defendia a tese de que o principal problema da sociedade portuguesa é a Justiça.

A partir daí, eu passei a ser um crítico contundente do sistema de justiça em Portugal e ganhei muitos inimigos porque os agentes da justiça em Portugal são, por via de regra, híper sensíveis à crítica e vingativos. Mas não foi esse o principal problema gerado pela publicação do livro.

O principal problema foi outro. O livro era dedicado à minha primeira neta, que na altura tinha quatro anos. O título "F." era a inicial do seu nome, Francisca. O problema é que agora, que já tenho oito netos, quatro raparigas e quatro rapazes, todos querem que eu lhes escreva um livro.

A minha tese fora fortemente influenciada pela observação, ao longo de muitos anos, do funcionamento do sistema de justiça em Portugal em comparação com o funcionamento do sistema de justiça de um país onde eu tinha vivido vários anos, ainda jovem adulto - o Canadá.

Poucos meses depois da publicação do livro, conheci em Portugal um senhor australiano que era gestor de uma multinacional em Lisboa. Estava em Portugal há dois anos. No dia em que nos conhecemos ofereci-lhe o livro, sem revelar o conteúdo.

Como a Austrália é um país muito parecido culturalmente com o Canadá, eu aproveitei para testar com ele a validade da minha tese, começando por lhe perguntar o que é que ele gostava mais em Portugal. Ele indicou-me várias razões para gostar de Portugal, incluindo a amabilidade das pessoas, e todas eu próprio subscrevia.

E foi, então, que lhe pus a questão cuja resposta me interessava mais conhecer: "Quais eram os principais problemas que ele via em Portugal?".

Ele nem hesitou: "The big problem is justice" e acrescentou: "Every crook gets away from justice". A resposta quase dispensa tradução: "O grande problema é a justiça. Qualquer chico-esperto [trapaceiro, crápula, vigarista] consegue iludir a justiça".

Esta resposta deixou-me muito feliz porque confirmou a minha tese. Mas criou-me outro problema, que andou a bailar no meu espírito durante anos até que eu conseguisse dar-lhe uma resposta, e que era o seguinte:

-Será que no Canadá (ou na Austrália) não existem chico-espertos?

Na realidade, por mais que puxasse pela memória, eu não conseguia recordar-me de me ter relacionado com um único chico-esperto durante os oito anos em que vivi no Canadá, enquanto que aqui em Portugal, eu não posso dizer que me cruzo com eles todos os dias, mas é frequente encontrar alguns pelo caminho.

Tenho de admitir que, com o decorrer do tempo, fui conseguindo alguns progressos no sentido de chegar à resposta. Portugal tem uma cultura católica, uma palavra que significa "universal". Ora uma cultura universal tem de possuir um código ético muito flexível para integrar todos os povos do mundo, desde os prussianos até aos índios da Amazónia. Pelo contrário, o Canadá, com a sua influência calvinista, é muito menos tolerante a figuras moralmente exóticas, como é o caso do chico-esperto.

Foi somente esta semana, ao escrever a série de posts a que dei o título "O direito à não-auto-incriminação" (cf. aqui, aqui e aqui), que eu cheguei finalmente à resposta relativa à questão que me tem ocupado o espírito ao longo dos últimos anos:

-Será que no Canadá (ou na Austrália) não existem chico-espertos?

Foi no momento, no segundo post dessa série, em que me referi à figura do safado ou do chico-esperto em relação com o meu case-study e o instituto jurídico da "Alteração não-substancial dos factos" previsto no Código do Processo Penal.

Aquela manobra de que fui alvo na leitura da sentença era típica de um chico-esperto. E era a própria lei que encorajava a chico-espertice. Eu tinha entregue ao tribunal um e-mail para minha defesa. O juiz pega no e-mail, volta-o contra mim, como "prova" do "crime" que eu cometi, que ele inventou e que nunca me passara pela cabeça e, em seguida, condena-me sem sequer me dar o direito a defender-me da manobra. E tudo isto foi feito de forma perfeitamente legal com base no artigo 358º do CPP.

-Em Portugal existem chico-espertos porque é o próprio sistema de justiça que os encoraja,

foi a conclusão que tirei enquanto escrevia os dois últimos posts dessa série consagrada ao "direito à não-auto-incriminação". Mas esta conclusão ainda não respondia à questão principal e que era a seguinte:

-Será que no Canadá (ou na Austrália) não existem chico-espertos?

Foi então que me lembrei do gestor australiano e da conversa que tive com ele. E se fez luz no meu espírito:

-Sim, no Canadá (ou na Austrália) também existem chico-espertos.
-Estão é todos na prisão.
-Ao passo que em Portugal andam todos em liberdade.
-Alguns até são juízes.

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