10 maio 2020

O direito à não-auto-incriminação (I)


I. O nervosismo do juiz



"Mas não apenas isso. Antes de proceder à leitura da sentença, o juiz juntou como prova do ilícito que eu cometera um documento que eu juntara ao processo em minha defesa e que agora era utilizado contra mim, ao abrigo de um artigo do Código do Processo Penal, que não me dava sequer a possibilidade de defesa (cf. aqui)"
(cf. aqui)

Esta frase está contida no nono post de uma série de dez em que há cerca de ano e meio eu comentei  a sentença que o juiz do Tribunal Judicial de Matosinhos produziu sobre mim acerca do meu case study. O referido post tem o título "À maneira" [da Inquisição].

Agora, utilizando aquela frase que então escrevi, mas que não desenvolvi, eu pretendo mostrar como a cultura inquisitorial está geralmente difundida por todo o nosso sistema de justiça criminal, e não é exclusiva do Ministério Público. Em parte porque muitos juízes acedem à carreira da magistratura judicial vindos do Ministério Público.

O meu tema central é o direito à não-auto-incriminação a que fiz referência no post em baixo.

Recordo perfeitamente aquela manhã de 12 de Junho de 2018 (cf. aqui). Era a oitava sessão do meu julgamento que durara quatro meses, e seria exclusivamente dedicada à leitura da sentença. Eu estava acusado dos crimes de ofensa a pessoa colectiva à sociedade de advogados Cuatrecasas e de difamação agravada ao seu director, o eurodeputado Paulo Rangel (que se encontrava numa situação de conflito de interesses - deputado e  advogado com clientes do Estado - que hoje é proibida por lei).

Na sala de audiência estavam as pessoas habituais que já se conheciam há mais de quatro meses, com duas excepções salientes.

Na tribuna, ao centro, estava o juiz e à sua direita o magistrado X (J. Ferreira da Rocha).  Em frente ao juiz, a cerca de quatro metros de distância, estava eu - o réu. À minha direita, sentada numa secretária lateral, estava a advogada de defesa, e à esquerda, simetricamente, estava sentado noutra secretária um dos dois advogados de acusação, o Filho Encarnação.

Era nesta secretária, onde sempre se sentara ao lado do Filho, que se notava a primeira excepção - a ausência do Papá Encarnação. O Papá Encarnação não compareceu à leitura da sentença. Estava abatido e presumo que bastante envergonhado. As alegações finais tinham sido um desastre para ele. Na realidade, todo o julgamento foi um desastre para ele. Naquela altura, já toda a gente sabia, porque já tinha vindo no jornal, que ele me propusera um desconto de 95% nos crimes, propondo-me retirar as queixas e evitar o julgamento se, em lugar dos 100 mil euros de indemnizações que antes  me exigira, eu pagasse apenas cinco mil. Nunca ninguém me tinha oferecido um desconto tão generoso mas, ainda assim, eu rejeitei.

Cá atrás na audiência, estavam as únicas quatro pessoas que assistiram a todas as sessões do julgamento - os meus dois irmãos e as minhas cunhadas. E era na audiência que se notava a segunda excepção. Naquela manhã,  também lá estavam sentados dois jornalistas, um do JN e outra da Lusa.

O juiz estava imensamente nervoso, e isso contrastava com a serenidade que sempre mostrara ao longo dos quatro meses do julgamento. Trouxe uma garrafa de litro e meio de água para a sala de audiências, da qual bebia continuamente em pequenos goles. Ajeitava muitas vezes o maço de folhas que tinha na mão e a partir do qual lia a sentença. Parecia ter muita pressa em despachar a parte absolutória da sentença para passar à parte condenatória, presumivelmente porque sabia que essa é que era verdadeiramente controversa.

E, no entanto, este era, ou devia ser, um julgamento de lana caprina - um julgamento por ofensas que acaba imediatamente em absolvição do réu ou que, em última instância, anos mais tarde, acaba invariavelmente na condenação pelo TEDH dos juízes e do Estado português por violação do direito à liberdade de expressão dos seus concidadãos, e na absolvição do arguido.

Talvez viesse daí o nervosismo do juiz, a juntar à exposição mediática. Quanto a esta, ele já possuía alguma experiência porque já tinha presidido a julgamentos muito mais mediáticos do que o meu (cf. aqui e aqui). Foi, aliás, por virtude deste mediatismo, que eu na altura me questionei sobre a alegada aleatoriedade na distribuição dos processos nos tribunais portugueses (cf. aqui) - um tema que tem sido objecto de uma imensa atenção mediática em meses mais recentes, e não por boas razões.


(Continua)

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