12 maio 2020

O direito à não-auto-incriminação (III)

(Continuação daqui)


III. Auto-incriminação à força


O Rui Pinto protestou contra o facto de que o Ministério Público só estava interessado na sua auto-incriminação (cf. aqui).

A auto-incriminação é uma característica do processo penal que o Ministério Público herdou da Inquisição e que hoje, em democracia, a menos que seja produzida de livre vontade, viola um dos direitos humanos fundamentais previstos na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cf. aqui, pp. 40 e segs.).

Nesta série de posts, eu tenho procurado mostrar que, em Portugal,  a auto-incriminação do arguido não é exclusiva da fase de instrução, a que se referem os protestos do Rui Pinto, mas pode ocorrer também na fase de julgamento.

E, mais importante ainda, procurei mostrar que a auto-incriminação do arguido pode não se cingir a pressões, ameaças ou chantagens por parte das autoridades judiciais para que ele se auto-incrimine - e às quais ele pode ou não ceder - mas pode também surgir durante o processo penal como uma auto-incriminação forçada sem o que o arguido tenha possibilidade de se defender.

Os institutos da "Alteração não substancial dos factos" (artº 558º do CPP) e da "Alteração substancial ds factos" (artº 559º do CPP), a que já fiz referência anteriormente (cf. aqui), são dois instrumentos privilegiados para forçar a auto-incriminação do arguido.

Ao fazê-lo, como referi noutro lugar (cf. aqui), eles passam uma mensagem muito clara ao réu:

"Não te defendas. Podes estar a cavar a tua própria sepultura. Entrega-te nas mãos dos teus algozes, que cuidarão de ti muito melhor do que tu poderás fazer". 

É preciso não esquecer que o lema da Inquisição era "Misericórdia e Justiça" significando que todas as suas crueldades, além de servirem a "justiça", eram feitas para o "bem" do réu.

O artº 558º do CPP, em particular, contém um detalhe de natureza inquisitorial, no seu número 2,  que é absolutamente extraordinário. Vale a pena reproduzir o artigo na íntegra:

Artigo 358º
Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia

1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão em causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3 - O disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. 
(Fonte: aqui)

Em termos do meu case-study, este artigo teve o seguinte significado prático. Eu submeti para minha defesa, ainda na fase de instrução, um e-mail que tinha trocado com um mecenas. O juiz pegou nesse e-mail e virou-o contra mim, usando-o como "prova" do "crime" que eu cometi. Como tinha sido eu (defesa) a submeter o e-mail, o número 2 deste artigo não me dá o direito a defender-me desta manobra do juiz.

Quer dizer, aquilo que seria um direito elementar que era o juiz dar-me a palavra (ou à minha advogada) para que eu pudesse defender-me, por exemplo, dizendo "Senhor juiz, a interpretação que o senhor deu ao e-mail não faz sentido nenhum por isto, por aquilo e por aqueloutro…", esse direito eu não tive.

Ficou como interpretação final e definitiva do e-mail a interpretação abstrusa e maliciosa que o juiz lhe deu. O juiz auto-incriminou-me à força sem me dar a possibilidade de me defender.

No fim,  foi o juiz que me acusou acerca do facto ilícito de que nunca ninguém me tinha acusado - o de eu ter posto em causa a relação de confiança entre advogados (Cuatrecasas) e  os seus clientes (HSJ). Foi também o juiz que, com base naquele artigo do CPP, me auto-incriminou à força e sem me conceder o direito de defesa. Foi ainda o juiz que, com base nessa auto-incriminação forçada, produziu a "prova" que suportava a sua própria acusação. Finalmente, foi o juiz que me condenou.

Foi a sentença perfeita de um juiz inquisidor - ele foi ao mesmo tempo o acusador e o juiz.

E tudo isto foi feito com a aparência da maior legalidade, assente no Código do Processo Penal português.

É claro que o que torna tudo isto uma ilegalidade e uma farsa completa é a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (especialmente o seu artigo 6º), que tem um estatuto, na hierarquia das leis, superior ao CPP, e que garante a todo o cidadão o direito a defender-se e também o direito a não se auto-incriminar contra a sua própria vontade.

Mas, enquanto o caso não chega ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem - e muitos casos não chegam por falta de informação, por falta de meios ou por falta de tempo -, os juristas portugueses - advogados, magistrados do Ministério Público e até juízes - vão-se entretendo a brincar à justiça inquisitorial  fazendo dos cidadãos e do próprio ideal de justiça os seus peões.

Passados alguns dias sobre a sentença - estando eu convicto de que o juiz lia este blogue - enviei-lhe daqui uma mensagem (cf. aqui), mas não sei se produziu algum efeito, ou sequer se foi entendida. A mensagem era a seguinte:

"Um juiz que seja um verdadeiro juiz, não acusa; um juiz, que seja um verdadeiro juiz, julga; porque o juiz-acusador é o juiz da Inquisição, que não é juiz nenhum - é um algoz"  

Que o Ministério Publico - de que o Rui Pinto se queixa - faça tudo isto ainda se compreende porque o Ministério Público é o herdeiro directo da Inquisição e, portanto, transporta toda a sua cultura. Agora, um juiz, em fase de julgamento, comportar-se como um verdadeiro inquisidor, é mais difícil de compreender.

Ou talvez não. Foi o próprio juiz que forneceu a explicação numa sessão do julgamento.

Durante uma sua intervenção, a certa altura apontou na direcção dos advogados de acusação e disse "Sim, porque eu já estive nesse lugar…". E, em seguida, apontou na direcção do magistrado do Ministério Público e acrescentou: "E nesse também…"

Para quem não soubesse, como eu, ficou a saber a partir dali que o juiz, antes de ser juiz, tinha sido advogado e também magistrado do Ministério Público.

É claro que na altura em que produziu a sentença o juiz já não estava no Ministério Público.

O Ministério Público é que ainda estava nele.




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