(Continuação daqui)
373. Uma saudável aversão ao poder político
A Igreja Católica está sempre pronta a dormir na cama com qualquer poder político (cf. aqui). Este fascínio pelo poder é uma das características mais marcantes do carácter anti-liberal da cultura católica e uma das que menos tem sido enfatizada.
Ela está presente no caso Almeida Arroja v. Portugal e põe em contraste a cultura católica portuguesa com a cultura protestante que enforma a CEDH e a jurisprudência do TEDH.
Quem, em Portugal, difamar o seu vizinho está sujeito a uma pena que, em geral, será de multa, mas que, em caso de reincidência, pode ir até dois anos de prisão. Isto é assim se o vizinho fôr um cidadão comum.
Porém, se o vizinho fôr um agente do Estado como um deputado, um magistrado, um presidente da Câmara, um advogado ou até o chefe da repartição de Finanças, aí, o caso muda de figura, estamos a falar de gente importante. Aí, a difamação passa a ser agravada e as penas são aumentadas em 50%, significando que, no limite, podem ir até três anos de prisão.
Ora, eu tive a infeliz ideia de ofender um cara que era ao mesmo tempo deputado e advogado, para além da própria sociedade de advogados a que ele pertencia. Não se faz a ninguém, muito menos a um cara como este. É difamação agravada. Apanhei uma pena de multa elevadíssima, 350 dias a 20 euros ao dia, num total de 7.000 euros. Da próxima vez, se não fosse o TEDH, iria de certeza para a prisão.
É muito diferente da católica a maneira como a cultura protestante, que esteve na origem da sociedade livre, olha para o poder político. Fá-lo com desconfiança. E porquê? Porque são as pessoas que detêm alguma forma de poder aquelas que maior mal podem produzir às outras, e as figuras de Hitler ou Estaline ocorrem imediatamente ao espírito. O poder político é um mal necessário, é certo, mas, ainda assim, é sempre um mal.
A Igreja Católica vê o poder político como um concubino e, na verdade, a história da Igreja Católica não é outra coisa senão uma relação de concubinato com o poder político. Daí a permanente bajulação desta cultura em relação ao poder político, concedendo-lhe privilégios, ou isentando-o de ónus, que não concede ao cidadão comum. Pelo contrário, a cultura protestante e de uma sociedade livre olha para o poder político como uma ameaça, exigindo que ele sirva a sociedade, e não que se sirva dela, e submetendo os seus agentes a exigências de comportamento muito mais severas do que aquelas que se aplicam ao cidadão comum.
Por isso, a cultura católica considera que é mais grave ofender um político do que um cidadão comum - e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que me condenou, expressa isso mesmo - ao passo que a cultura liberal do protestantismo, que enforma a jurisprudência do TEDH, considera que é exactamente ao contrário, um político é mais ofendível do que o cidadão comum.
O traço distintivo de um verdadeiro liberal não é ele andar constantemente a agitar a bandeira da liberdade, como geralmente se crê. O traço mais distintivo de um verdadeiro liberal é a sua saudável aversão ao poder político.
(Continuação acolá)
Sem comentários:
Enviar um comentário