13 setembro 2024

A Decisão do TEDH (336)

(Continuação daqui)




336. O campeão 


Uma das questões mais interessantes sobre a civilização ocidental é a da longevidade da Igreja Católica.

Como é possível que esta instituição, que conheceu todas as tragédias da humanidade, que passou por guerras, pestes e  revoluções, terramotos e tsunamis, que conheceu toda a espécie de regimes políticos e os seus opostos, que perseguiu e foi perseguida de todas as maneiras e feitios, esteja aí, ainda apresentável, na provecta idade de dois mil e tal anos?

Eu não pretendo conhecer a resposta, que é complexa, e que terá vários factores contributivos. Mas um desses factores é, de certeza, a sua capacidade de adaptação às circunstâncias, em linguagem popular "o seu jogo de cintura".

A Igreja Católica deita-se na cama com qualquer poder político, desde que seja poder. Mas não de forma absoluta. Ao mesmo tempo que se casa com o poder político do momento, deixa sempre alguns dos seus na oposição. O objectivo é óbvio. Quando o regime vigente é derrubado, ela pode sempre apontar alguns dos seus como opositores ao regime, estabelecendo a ponte para se casar com o poder político que vier a seguir.

(A Igreja Católica é bem capaz de ser a Prostituta da Babilónia de que fala o Livro do Apocalipse, mas ela não é apenas isso - esse é o problema. Ela é muito mais do que isso. Ela é Tudo). 

Portugal oferece a este respeito um excelente exemplo.  O opositor que Salazar mais ressentiu, segundo ele próprio, não foi nem Álvaro Cunhal, nem Mário Soares nem Humberto Delgado, mas sim um destacado membro da Igreja Católica, o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes. 

Salazar concebeu o Estado Novo de acordo com a doutrina católica e inspirando-se fortemente na Encíclica Quadragesimo Anno (1931) do Papa Pio XI. A ideia do Estado Corporativo, por exemplo, foi tirada daí. Ele trabalhou como ninguém para reconciliar Portugal com a  Igreja Católica, acabando com um século de perseguições à Igreja, e culminando na Concordata de 1940. 

Depois deste trabalho em favor da Igreja Católica, ele  nunca conseguiu digerir a punhalada que a Igreja lhe espetou nas costas com o pronunciamento público do Bispo do Porto criticando o regime. A partir daí, a relação de Salazar com a Igreja nunca mais foi a mesma.

Escusado será dizer que, logo que o regime mudou em 1974, a Igreja se apressou a  dizer que sempre defendeu a democracia e um dos seus heróis era, obviamente, D. António Ferreira Gomes.

Quando pronunciei o comentário televisivo que esteve na origem deste processo judicial, comecei por pegar na situação de conflito de interesses em que se encontrava o Paulo Rangel - ao mesmo tempo eurodeputado e director de uma sociedade de advogados -  uma situação que viria a ser proibida por uma lei anti-corrupção de  2019.

Mais tarde, quando tomei conhecimento da minha condenação no Tribunal da Relação do Porto, fui procurar na internet informação sobre o juiz Pedro Vaz Patto que era o relator do acórdão, o qual agora me condenava também por difamação agravada ao Rangel, um "crime" de que tinha sido absolvido em primeira instância.

E em breve compreendi as razões que conduziram a essa condenação. Uma delas é que o juiz Vaz Patto não poderia nunca ser sensível ao meu argumento relativo à situação de conflito de interesses em que se encontrava o Rangel, porque o juiz era, ele próprio, o campeão das situações de conflito de interesses entre a sua condição de juiz e os lugares que ocupava na Igreja Católica. 

Na última contagem que fiz (Dezembro de 2022), esses lugares eram os seguintes (a minha única fonte  de informação é a internet):

Juiz do Tribunal Patriarcal de Lisboa; presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, um órgão da Conferência Episcopal Portuguesa; membro da Comissão Permanente do Conselho Pastoral Diocesano de Lisboa; presidente da Assembleia Geral da Associação O Ninho, uma IPSS ligada à Igreja Católica; vogal da Direcção da Associação dos Juristas Católicos; director da revista Cidade Nova do Movimento dos Focolares, um movimento laical da Igreja Católica.

Quer dizer, se há alguém que nos últimos anos contribuiu para deitar na mesma cama o Estado e a Igreja, esse alguém é certamente o juiz Pedro Vaz Patto. Na realidade, ele próprio é, ao mesmo tempo, o Estado e a Igreja, as duas institituições convivem nele.

Como é que ele amanhã vai julgar no Tribunal da Relação do Porto um padre pedófilo ou um membro pedófilo do Movimento dos Focolares, porque eles existem e não são poucos? (cf. aqui)

(Continua acolá)

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