08 maio 2021

Marçanos da judicatura (XX)

 (Continuação daqui)


XX. Uns verdadeiros safados


A expressão "Preso por ter cão e preso por não ter" não é um mero dictum popular vazio de significado. Ela reflecte a falta de confiança que os portugueses desde longa data têm no seu próprio sistema de justiça. Ela exprime o carácter persecutório da justiça portuguesa ao qual nem mesmo a democracia conseguiu pôr cobro. 

Diz-se que um procurador do ministério público de Estaline costumava afirmar: "Dêem-me o criminoso que eu arranjo-lhe os crimes". É assim também em Portugal, um país que se proclama democrático,  mas que tem no vértice da judicatura, a presidir ao mais alto tribunal do país - como é o Tribunal Constitucional -, não um verdadeiro juiz, mas um comissário político pertencente ao partido do Governo.

A questão a que pretendo responder agora é a seguinte: Como é que um sistema de justiça age politicamente, como é que se faz política dando a sensação de que se está a fazer justiça, qual é a tecnologia, enfim, que permite à justiça fazer política?

A resposta é: criando um mundo alternativo ou orwelliano, diferente do mundo real, e seguindo a lógica desse mundo, nunca esquecendo de repetir à exaustão as mentiras desse mundo até ao ponto em que, pela força da repetição, elas se tornem verdades.

O cidadão A já tinha notado que a juíza Rangel no seu despacho de Dezembro não se cansava de repetir a frase "transitado em julgado" ou "necessariamente transitado em julgado" (cf. aqui), e isso ela volta a fazer no acórdão 229/2021. É esta, para a juíza Rangel e para o Tribunal Constitucional, a porta de entrada do mundo alternativo, que vai levar à condenação do cidadão A.

A lei diz que sempre que dois acórdãos de duas secções diferentes do Tribunal Constitucional entrem em conflito, cabe recurso para o Plenário. Estão neste caso os acórdãos 31/2020 e  646/2020 e portanto, à luz da lei, cabe recurso do segundo para o Plenário.

Porém, a juíza Rangel vai acrescentar um pequeno pormenor à lei, que não está lá, a saber "desde que o primeiro dos acórdãos tenha transitado em julgado no Plenário" (cf. aqui). Ora, neste novo mundo, como o acórdão 31/2020 ainda não transitou em julgado no Plenário, já não cabe recurso do acórdão 646/2020 para essa instância.

Consequentemente, onde existia uma contradição entre os acórdãos 31/2020 e 646/2020 ela deixa de existir por uma razão muito simples -  o acórdão 31/2020 não existe. O contraste entre o mundo real e o mundo alternativo criado pela "juíza" Rangel (ou, como ela afirma, pelo próprio Tribunal Constitucional) fica agora claro. No mundo real o acórdão 31/2020 existe. No mundo alternativo, o acórdão 31/2020 não existe.

Portanto, não cabe recurso do acórdão 646/2020 para o Plenário. 

E quanto à questão da suspensão da pendência? A resposta só pode ser outra vez claramente negativa e a "juíza" Rangel expõe-na com toda a clareza no acórdão 229/2021.

O cidadão A  queixa-se de estar a ser prejudicado em relação aos guardas da GNR porque no acórdão 31/2020 o Tribunal Constitucional reconhece aos guardas o direito a recorrerem para o Supremo, um direito que nega ao cidadão A no acórdão 646/2021.

-Prejudicado!? - terá pensado a juíza Rangel - este cidadão A não deve estar bom da cabeça!..

E depois, movendo-se sempre no mundo alternativo e virtual que ela própria criou, explica por que é que não pode deferir o pedido de suspensão da instância. Como o acórdão 31/2020 não existe, também não existe nenhum direito que o Tribunal tenha reconhecido aos guardas, e que tenha negado ao cidadão A. Em consequência, o cidadão A não tem razão em se sentir prejudicado face aos guardas da GNR.

Nas palavras da própria juíza Rangel (ênfase meu):

"Ora, resultando do decidido supra (cf. 20.) que não se encontravam preenchidos, nessa data, tais pressupostos, por inexistir trânsito em julgado do Acórdão n.º 31/2020, inexiste relação de prejudicialidade passível de fundar a suspensão da instância pretendida pelo recorrente – de modo a precaver a hipótese (futura e eventual) de prolação de decisão que confirme o juízo de inconstitucionalidade plasmado no Acórdão n.º 31/2020" (cf. aqui).

Maior safadeza é difícil imaginar - "inexiste relação de prejudicialidade", diz a "juíza" Rangel. Isso é assim lá no mundo alternativo criado pela própria "juíza" e pelos seus pares. Porque, no mundo real, existe relação de prejudicialidade e ela é bem clara.

A partir do acórdão 229/2021, que lhe nega a suspensão da instância, o cidadão A fica inelutavelmente condenado a cumprir a sentença da Relação, ao passo que os guardas da GNR continuam sem ter de a cumprir. Em suma, o cidadão A está condenado, os guardas ainda se poderão safar (e, provavelmente, o Tribunal Constitucional acabará por os safar, por exemplo, nunca levando o acórdão 31/2020 ao Plenário e arranjando maneira de o processo prescrever)

É isto que faz, não dos guardas da GNR, mas da "juíza" Rangel e dos seus colegas do Tribunal Constitucional uns verdadeiros safados.

(Continua)

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