20 dezembro 2020

O último recurso (III)

 (Continuação daqui)



III. Direito de acesso a um tribunal 

O meu case study (cf. aqui), em que fui julgado por ofender um grupo de militantes do PSD (o eurodeputado Paulo Rangel e colegas seus agrupados no escritório do Porto da sociedade de advogados Cuatrecasas, de que ele era director na altura) parece, às vezes, o julgamento de Cristo, em que todas as regras do processo penal foram violadas.

A mais importante, evidentemente, foi a condenação de um inocente. Mas existem outras à luz da carta dos direitos humanos consagrados na Convenção Europeia do Direitos do Homem, que Portugal subscreveu em 1978 (cf. aqui).

O tribunal judicial de Matosinhos, absolvendo-me embora do alegado crime de difamação agravada ao eurodeputado Paulo Rangel, condenou-me pelo crime de ofensa a pessoa colectiva à sociedade de advogados Cuatrecasas, violando  o meu direito à liberdade de expressão previsto no artº 10º da CEDH. 

A condenação foi a típica condenação de um tribunal da Inquisição, de que Portugal possui uma infeliz tradição. Foi o próprio juiz, durante a leitura da sentença, a fazer a acusação, a juntar a "prova" e a condenar-me sem que eu tivesse a mínima possibilidade de abrir a boca para me defender (cf. aqui)

Eu não ficaria surpreendido, mais tarde, ao constatar que o juiz, antes de ser juiz, tinha sido magistrado do Ministério Público, que é a versão moderna da Inquisição. Tratou-se, no caso, de uma ostensiva violação do meu direito à defesa previsto no artº 6º, nº 3, da CEDH.

Começou aí uma série de outras violações do artº 6º da CEDH que é o artigo que trata do "direito a um processo equitativo" ou justo - o artigo que o sistema português de justiça mais dificuldade tem em cumprir dada a sua tradição inquisitorial, e que mais vezes tem levado à condenação de Portugal no TEDH.

No Tribunal da Relação do Porto passei a ser também condenado por difamação agravada ao eurodeputado Paulo Rangel, de que tinha sido absolvido em primeira instância, reforçando a violação do meu direito à liberdade de expressão previsto no artº 10º da CEDH (cf. aqui).

Mas não apenas isso, o juiz-relator do acórdão, Pedro Vaz Patto, é colega do eurodeputado Paulo Rangel na Associação O Ninho (cf. aqui) - o juiz sendo presidente da Assembleia Geral, o eurodeputado Rangel membro da Comissão de Honra -, violando o meu direito a um tribunal imparcial também previsto no artº 6º, nº 1, da CEDH.

No Tribunal Constitucional, estando de um dos lados do processo o eurodeputado do PSD Paulo Rangel e outros militantes do PSD, o processo foi parar às mãos da juíza Rangel de Mesquita, nomeada precisamente pelo PSD para o Tribunal Constitucional - mais uma violação do meu direito a um tribunal imparcial consagrado no artº 6º, nº 1, da CEDH.

Naturalmente, o acórdão 646/2020 do Tribunal Constitucional, de que foi relatora a juíza Rangel, negou-me o direito ao recurso [para o Supremo do acórdão da Relação] previsto no artº 32º da Constituição, que corresponde na CEDH ao direito a um duplo grau de jurisdição, consagrado no artº 2º do Protocolo nº 7, anexo à CEDH.

E o despacho de 9 de Dezembro, assinado pela juíza Rangel, indeferindo o meu recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional com base em exigências formais que não estão na lei (o trânsito em julgado do acórdão 31/2020, cf. aqui), constitui uma violação do meu direito de acesso a um tribunal também previsto no artº 6º, nº 1 da CEDH.

O Tribunal Constitucional é useiro e vezeiro em violar este direito aos portugueses. Num acórdão de 31 de Março deste ano, o TEDH condenou duplamente Portugal por o Tribunal Constitucional ter negado indevidamente este direito a vários cidadãos portugueses com base em formalismos legais (cf. aqui: § 123, 125, 130).

No recurso que, no âmbito do meu case study, o advogado Ferreira Alves enviou na passada sexta-feira ao Tribunal Constitucional, ele cita abundantemente este acórdão do TEDH  para protestar contra o despacho da juíza Rangel. 

Nos dois casos tratados no acórdão do TEDH - Santos Calado c. Portugal e Amador Faria da Silva c. Portugal - porque, na realidade, se tratou de uma dupla condenação, o Tribunal Constitucional rejeitou indevidamente recursos de cidadãos portugueses. O TEDH considerou que o Tribunal Constitucional fez prova de formalismo excessivo e condenou o Estado português por violação do direito de acesso a um tribunal daqueles cidadãos portugueses, previsto no artº 6º, nº 1, da CEDH. 

Mas, aparentemente, o Tribunal Constitucional não tem emenda. Nem o sistema de justiça português consegue reformar-se da sua tradição inquisitorial de perseguir pessoas.

(Continua)

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