23 setembro 2018

Sentença (IX)

(Continuação daqui)


IX. À maneira


O caso era "Portugal e Cuatrecasas vs. Arroja". Eu tinha contra mim o aparato acusatório do Estado português com a sua tenebrosa tradição inquisitorial, representado pelo Ministério Público, e uma das mais poderosas sociedades de advogados do mundo. Tinha contra mim e contra a Associação Joãozinho - uma instituição que, até pelo nome, não intimida ninguém - porque fora enquanto presidente desta Associação que eu fizera o comentário televisivo que agora me tinha ali de pé.

Era o momento da leitura da sentença. O juiz  ia finalmente anunciar a decisão que tinha tomado entre mim, por um lado, e os magistrados do MP e os advogados da Cuatrecasas por outro.

Quando passou à leitura da parte condenatória, eu considerei insólito o estatuto de privilégio em que ele parecia colocar os advogados, um patamar ao qual muito poucos teriam acesso. Não se podia dizer em relação aos advogados - certamente que não em relação aos advogados da Cuatrecasas - aquilo que se podia dizer acerca dos políticos do PSD, dos pilotos e das hospedeiras da TAP, dos administradores e dos directores de balcão da CGD, ou dos jogadores de futebol.

Ficava, no entanto, por saber aquilo que eu não podia dizer acerca dos advogados mas que podia ter dito acerca dos políticos, dos profissionais da TAP ou da CGD, ou mesmo do futebol.

A explicação viria em breve e com toda a clareza. Resumia-se numa frase: eu não podia ter posto em causa a relação de lealdade que existe entre advogados e os seus clientes. A razão é que essa relação é crucial à profissão de advogado.

Eu continuei a ver aqui a atribuição pelo juiz de um estatuto de excepção aos advogados, porque essa relação de lealdade é igualmente crucial para o desempenho de qualquer outra profissão, seja a de administrador da CGD, piloto da TAP ou jogador de futebol. Nenhum destes profissionais tem futuro se não fôr leal a quem lhe paga. Por que é que para os advogados haveria de ser especial?

De qualquer forma, eu ficava a conhecer pela primeira vez o facto ilícito que tinha cometido - o de ter posto em causa a relação de lealdade entre advogados e os seus clientes. É que, durante o julgamento, que durou quatro meses, ou antes na fase de instrução, nunca ninguém me tinha imputado este ilícito.

Nunca a Cuatrecasas se queixou de eu ter posto em causa a sua relação de lealdade com o HSJ. Nunca o Ministério Público o fez, muito menos qualquer  dos advogados de acusação  ou as testemunhas que, entre si, somavam uma dezena de advogados. Nunca nem ninguém.

Quem me estava a imputar o facto ilícito  - o de ter posto em causa a relação de lealdade entre advogados e os seus clientes -  era o próprio juiz, e dava-me a conhecê-lo  naquele preciso momento  enquanto lia a sentença. E antes que eu pudesse sequer interiorizar a acusação,  cerca de três minutos depois e umas quantas páginas adiante, já me anunciava a condenação por esse ilícito.

Mas não apenas isso. Antes de proceder à leitura da sentença, o juiz juntou como prova do ilícito que eu cometera um documento que eu juntara ao processo em minha defesa e que agora era utilizado contra mim, ao abrigo de um artigo do Código do Processo Penal, que não me dava sequer a possibilidade de defesa (cf. aqui).

E a tudo isto eu assisti de pé e calado, como é próprio de um réu que está a ouvir a sua sentença.

Quer dizer, eu fui condenado pelo crime de ofensas à Cuatrecasas por um ilícito de que ninguém se queixou - nem mesmo a Cuatrecasas - e com o qual nunca havia sido confrontado.

Eu fui condenado por um ilícito que o próprio juiz - aparentemente após uma "análise fina e atenta" (cf. aqui) - descobriu no meu comentário, que me foi comunicado durante a leitura da sentença,  e em relação ao qual nunca me deu a possibilidade de me defender.

Em suma, foi o juiz que, no acto de leitura da sentença, produziu a acusação, juntou a prova e procedeu à condenação sem que, no entretanto, eu tivesse sequer a possibilidade de abrir a boca para me defender,.

Eu fui condenado à maneira da Inquisição.

Quando saí do tribunal, esta injustiça pesava mais sobre mim do que a outra, que assentava num erro de jurisprudência. Os erros corrigem-se. Agora a pesada tradição da Inquisição, representada sobretudo no Ministério Público, se não se tinha corrigido até hoje, iria demorar gerações a corrigir.

Dias depois, já com o texto da sentença na mão,  fui de volta à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). O Artº 10º relativo à liberdade de expressão permitia agora aos portugueses exprimirem-se com razoável liberdade. A sua jurisprudência tinha demorado  décadas a entrar em Portugal, o Estado português detinha ainda o record das condenações no TEDH por violações deste direito. Mas não havia dúvida que bastantes progressos tinham sido conseguidos.

A minha questão era agora a seguinte: haveria na CEDH algum artigo que protegesse os portugueses contra a sua própria e maléfica tradição penal, que é a tradição da Inquisição?

Sim, descobri que também havia. É o artigo 6º (Direito a um processo equitativo) que, a certa altura, diz assim (cf. aqui):


"3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:
(...)
b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa.
(...)" 


Estes são direitos mínimos. Mas eu nem aos mínimos tive direito.

Quando o juiz terminou a leitura da sentença, levantou a cabeça, olhou para mim e perguntou-me:

-Compreendeu?

Respondi que sim.

Tinha compreendido o essencial. Mas só quando saí cá para fora comecei a compreender tudo. Foi quando me lembrei de um episódio que ocorrera numa das sessões do julgamento, em que o juiz, num momento de maior descontração, deixou cair uma pequena nota autobiográfica.

E que nota autobiográfica era essa?

A de que, antes de ser juiz, tinha sido advogado e magistrado do Ministério Público.

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