13 janeiro 2020

Reduzir a criminalidade legal

Eu vou agora desenvolver a ideia apresentada em baixo pela juíza Clara Sottomayor (cf. aqui) e ilustrá-la com base no meu case-study a fim de enfatizar uma das suas grandes vantagens.

A ideia consiste em ampliar o âmbito e as funções do Tribunal Constitucional de modo que às funções que já desempenha - como a de verificar a constitucionalidade das leis aplicadas nas sentenças judiciais - se junte também a de garante dos direitos humanos fundamentais.

Esta segunda função seria semelhante à do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) e, por isso, o novo Tribunal Constitucional ampliado teria uma designação de Tribunal Constitucional dos Direitos Fundamentais (TCDF), ou outra análoga.

Existem várias vantagens que resultariam da existência de um TCDF, e a juíza Clara Sottomayor menciona algumas no seu artigo. Mas eu gostaria de me concentrar numa outra, e de a ilustrar com o meu case-study. Seria a vantagem de reduzir de forma substancial aquilo a que eu chamo "criminalidade legal".

"Criminalidade legal" é o título de um post que escrevi no ano passado e que foi um dos mais partilhados do ano (cf. aqui). Trata-se de um conceito de extrema utilidade para quem queira analisar e melhorar o nosso sistema de justiça.

O crime legal - normalmente cometido pelos insiders do sistema de justiça - é aquele que é praticado através do sistema de justiça de tal modo que, na sua perpetração, todas as leis e todas as decisões judiciais foram cumpridas, mas o resultado final é crime.

Na altura, ilustrei o conceito com vários exemplos, mas o mais popular - a julgar pelo número de partilhas do respectivo post - acabou por ser um caso envolvendo a sociedade de advogados Cuatrecasas, agindo em nome de uma empresa de celulose, e o chamado "Guardião do Tejo", Arlindo Marques (cf. aqui).

Vou então de volta ao meu case study (cf. aqui). Ainda está a decorrer o pedido de recurso sobre a decisão do Tribunal da Relação do Porto (TRP). No caso de o recurso me ser desfavorável, eu vou ter de cumprir a sentença fixada no acórdão do TRP. Esta sentença, incluindo juros, significa que vou ter de pagar cerca de 12 mil euros de indemnização ao Paulo Rangel, cerca de 6 mil euros à Cuatrecasas e 7 mil euros de multa ao Estado português, para além de custas judiciais (e despesas com advogados).

Entretanto, já apresentei queixa no TEDH contra o Estado português, a qual, entretanto, foi aceite (cf. aqui). É praticamente certo que o TEDH decidirá a meu favor porque este é, literalmente, um caso-de-escola da conflitualidade entre o direito à liberdade de expressão e o direito à honra. Nesse dia, o Estado português será condenado por ter violado o meu direito à liberdade de expressão (artº 10º da CEDH) e eu vou ser ressarcido de todo o dinheiro que gastei (acrescido de juros).

Mas, pergunta-se: o Rangel e a Cuatrecasas, nesse dia, vão devolver-me o dinheiro que entretanto lhes paguei?

Não. Quem me vai indemnizar é o Estado português - quer dizer, os contribuintes portugueses - de todo o dinheiro que gastei, incluindo as indemnizações ao Rangel e à Cuatrecasas (tudo acrescido de juros).

Quer dizer, no fim, o Rangel e a Cuatrecasas acabam a enriquecer, não à minha custa, mas à custa dos contribuintes portugueses.

É caso para perguntar: Mas os contribuintes portugueses fizeram algum mal ao Rangel ou à Cuatrecasas para terem de lhes pagar 12 mil euros num caso, e 6 mil no outro?

Não. Nenhum. A conclusão é inevitável: o Rangel e a Cuatrecasas terão enriquecido ilicitamente à custa dos contribuintes portugueses.

Todas as leis e todas as decisões judiciais foram cumpridas mas eles terão cometido o crime de enriquecimento ilícito - um caso de criminalidade legal. Na qualidade de insiders do sistema de justiça, aproveitaram-se do conhecimento que têm do sistema, e do poder que possuem para o manipular, para enriquecer ilicitamente à custa de inocentes - os contribuintes do país.

Pelo contrário, se existisse um TCDF em Portugal, a sentença só se tornaria efectiva depois de este tribunal se pronunciar. E como, em matéria de direitos humanos, ele estaria sujeito a  seguir a jurisprudência do TEDH, o TCDF iria absolver-me com a mesma elevadíssima probabilidade com que o TEDH o fará e, portanto, nunca haveria lugar ao pagamento das indemnizações da minha parte ao Rangel e à Cuatrecasas.

Eliminar-se-ia a criminalidade legal que o actual sistema consente e encoraja.

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