22 janeiro 2020

A honra (VII)

(Continuação daqui)

VII. A jurisprudência do caralho


Pergunto-me neste post se, dos acórdãos sobre os crimes de ofensas que tenho vindo a referir, envolvendo a palavra caralho,  resultou algum benefício para a sociedade, por exemplo, uma jurisprudência firme acerca da utilização da palavra caralho, as situações em que a sua utilização é crime e aquelas outras em que não é, de maneira que os cidadãos possam saber com clareza as linhas com que se cosem.

Não, não resultou. A única coisa que saiu dali - e continua a sair - é a ridicularização da justiça.

E não é surpreendente que seja este o resultado. Trata-se de uma expressão popular que tem tantas conotações quantas as que a espontaneidade e a imaginação popular lhe queiram dar com intrusões em todos os sectores da vida em sociedade, na literatura, na arte popular, até na doçaria (cf. aqui).

O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2010 (cf. aqui), que comecei por citar, remetendo para acórdãos anteriores  sobre o mesmo tema, faz uma distinção. Se utilizada como diminutivo, aumentativo ou expletivo, a palavra caralho não é crime (v.g., "Caralho!... que me queimei!..."). Mas se utilizada em discurso directo como em "Vai para o caralho", aí já configura um crime de injúria.

O Tribunal da Relação de Évora, no seu acórdão de 2018 (cf. aqui), segue esta orientação, condenando o jogador e o treinador de futebol porque mandaram o árbitro para o caralho.

Um ano antes, em 2017, o Tribunal da Relação de Lisboa num outro acórdão, segue a jurisprudência de 2010 de uma maneira talvez mais restritiva.  A propósito de um homem que, provavelmente alcoolizado, dirigiu uns impropérios a uns polícias que o abordaram, os juízes desembargadores escrevem:

"3. Ao proferir as seguintes expressões dirigindo-se a três agentes da PSP no exercício das suas funções e por causa delas "ninguém me tira daqui pois não obedeço nem a polícias nem a caralho nenhum! Vão para o caralho!" existe uma clara comparação entre os polícias ofendidos e um caralho, com um claro sentido pejorativo, desprestigiante e, consequentemente atentatório da honra e consideração que lhes é devida. Com esta contextualização, também mandar um agente da autoridade para o caralho, entendido como o órgão sexual masculino, constitui um ataque à honra e consideração a justificar a tutela  do direito penal" (cf. aqui)

Portanto, por esta altura, 2017-18, a julgar pela jurisprudência já citada, parece claro que é crime mandar alguém para o caralho ou, mais restritivamente até, comparar um polícia a um caralho.

Até que há cerca de três meses, o Tribunal da Relação de Lisboa - sempre o TRL a liderar a jurisprudência do caralho - produziu um acórdão bombástico e bastante mais liberal.

Estabelece o acórdão que, em contexto desportivo, não é crime mandar alguém para o caralho, como por exemplo, na frase que esteve sob apreciação do Tribunal: "Vá lá p'ra barraca, vai mas é pó caralho, seu filho da puta" (cf. aqui).

Os pobres arguidos - jogador de futebol e seu treinador - que, um ano antes,  foram condenados pelo Tribunal da Relação de Évora, não teriam sido agora condenados pelo Tribunal da Relação de Lisboa, segundo este acórdão.

No fim, a questão importante é a seguinte: É crime ou não é crime em Portugal mandar alguém para o caralho?

Pois, não se sabe bem ao certo (*). No caso de pretender mandar alguém para o caralho, por uma questão de segurança, eu sugeria que o fizesse enquanto está a fazer jogging ou a jogar badmington . Fora disso, é mais perigoso.

É a isto que conduzem os crimes de ofensas - ao desprestígio da justiça. Ninguém sabe as regras com que se cose, a justiça torna-se arbitrária ou aleatória, uma  questão de sorte (ou de azar), conforme observou  o Francisco Teixeira da Mota ainda a propósito de crimes de ofensas (cf. aqui).

Claro que uma justiça arbitrária ou aleatória não é justiça nenhuma. E, por isso, ninguém confia nela. Mesmo dispondo dos melhores magistrados do mundo (cf. aqui).
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(*) Na jurisprudência do TEDH que é quem, em última instância, manda nesta matéria, não é crime nenhum mandar alguém para o caralho.

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