21 janeiro 2020

A honra (IV)

(Continuação daqui)

IV. Pra caralho

Depois de ter citado, nos dois posts anteriores, um trabalho do Jornal i de 2012 (cf. aqui) sobre sentenças relativas a crimes de ofensas à honra, eu fiquei muito interessado sobre o acórdão da Relação de Lisboa de 2010, estabelecendo a jurisprudência sobre a utilização da palavra caralho.

Este acórdão é paradigmático porque resume tudo aquilo que pretendo dizer acerca da irrelevância criminal da ofensa e por que é que os crimes de ofensas já deviam há muito ter sido banidos do Código Penal português, tal como defendido pelo Conselho da Europa (a instituição que tem por missão zelar pelo respeito da Convenção Europeia do Direitos do Homem e que integra o TEDH).

O réu, um cabo da GNR, que disse a um superior "se não dá para trocar, então pró caralho" acabou por ser absolvido, mas o caso subiu até à Relação. E o réu só foi absolvido porque o Tribunal considerou que ele utilizou a palavra caralho como um expletivo. Depreende-se do acórdão que se ele tivesse dito ao superior hierárquico "Vai para o caralho" teria sido condenado.

O acórdão está online e vale a pena transcrevê-lo extensivamente, em parte para que todos fiquemos a saber quando é que a utilização da palavra caralho é crime de ofensa em Portugal, e quando não é. E também porque é um acórdão divertido pra caralho, sobretudo por isso (cf. aqui).


«Segundo as fontes, para uns a palavra "caralho" vem do latim "caraculu" que significava pequena estaca, enquanto que, para outros, este termo surge utilizado pelos portugueses nos tempos das grandes navegações para, nas artes de marinhagem, designar o topo do mastro principal das naus, ou seja, um pau grande. 

Certo é que independentemente da etimologia da palavra, o povo começou a associar a palavra  ao órgão sexual masculino, o pénis. E esse é o significado actual da palavra, se bem que no uso popular quotidiano a conotação fálica nem sequer muitas vezes é racionalizada. Com efeito, é público e notório, pois tal resulta da experiência comum, que CARALHO é palavra usada por alguns (muitos) para expressar, definir, explicar ou enfatizar toda uma gama de sentimentos humanos diversos e estados de ânimo.

Por exemplo, "pra caralho" é usado para representar algo excessivo. Seja grande ou pequeno demais. Serve para referenciar realidades numéricas indefinidas (exº: "chove pra caralho"; "o Cristiano Ronaldo joga pra caralho"; "moras longe pra caralho"; "o ácaro é um animal pequeno pra caralho"; "esse filme é velho pra caralho").

Por seu turno, quem nunca disse ou pelo menos não terá ouvido dizer para apreciar que uma coisa é boa ou lhe agrada: "isto é mesmo bom, caralho"?

Por outro lado, se alguém fala de modo  ininteligível poder-se-á ouvir "não percebo um caralho do que dizes" e se A aborrece B, B dirá para A "vai pró caralho" e se alguma coisa não interessa: "isto não vale um caralho" e ainda se a forma de agir de uma pessoa causa admiração "este gajo é do caralho" e até quando alguém encontra um amigo que há muito tempo  não via "como vai essa vida, onde caralho te meteste?".

Para alguns, tal como no Norte de Portugal com a expressão popular de espanto, impaciência ou irritação "carago", não há nada a que não se possa juntar um "caralho", funcionando este como verdadeira muleta oratória.

Assim, dizer para alguém, "vai para o caralho" é bem diferente de afirmar perante alguém e num quadro de contrariedade "ai o caralho" ou simplesmente "caralho", como parece ter sucedido na situação em apreço nestes autos. No primeiro caso, a expressão será ofensiva, enquanto que, ao invés,  no segundo caso, a expressão é tão-só designativa de admiração, surpresa, espanto, impaciência, irritação ou indignação (cfr. Dicionário da Língua Portuguesa da Priberam e da Porto Editora 2010) (…)»

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