22 janeiro 2020

A honra (VI)

(Continuação daqui)

VI. Investigadores criminais


Nenhum dos casos mencionados nos dois posts anteriores, que chegaram aos Tribunais da Relação de Lisboa (cf. aqui) e Évora (cf. aqui), respectivamente, tem mérito para ser analisado por um tribunal judicial. Não existe, em qualquer das duas situações, crime algum, embora num dos casos - o de Évora - dois cidadãos tenham sido condenados.

Nos dois casos existem, na pior das hipóteses, faltas disciplinares, a serem resolvidas dentro dos círculos sociais em que ocorreram. Num caso, é um cabo da GNR que diz uns palavrões a um superior hierárquico. É matéria para ser resolvida pela hierarquia da GNR e pelos órgãos disciplinares da instituição. Certamente não é matéria para fazer perder tempo a um tribunal superior do país.

No outro é um jogador de futebol e o seu treinador que chamam uns nomes ao árbitro e cospem sobre ele. É matéria para a justiça desportiva actuar - como certamente actuou - mas não para ser apreciada por outro tribunal superior do país. O árbitro, no seu relatório, terá reportado o que aconteceu e o órgão disciplinar competente terá aplicado as sanções apropriadas. O caso esgotou-se ali, não há qualquer razão válida para o levar à apreciação dos tribunais judiciais que têm verdadeiros crimes para se ocupar.

Mas, então, por que é que estes casos chegam aos tribunais?

Em primeiro lugar porque a Assembleia da República, fazendo orelhas moucas à recomendação do Conselho da Europa que já tem dez anos e todos os anos é reiterada, ainda não descriminalizou as ofensas. Em segundo lugar porque o Ministério Público, que é o porteiro do sistema de justiça penal, lhes dá entrada. É o Ministério Público que converte em acusação criminal aquilo que começa por ser uma queixa-crime de um particular.

Aqui o interesse do Ministério Público é sobretudo corporativo, pretendendo mostrar trabalho, aumentando as estatísticas da acusação criminal, para os magistrados poderem justificar aquilo que ganham - que, no topo da carreira, já ultrapassa o vencimento de primeiro-ministro.

E, dentro desta racionalidade corporativa, porque os crimes de ofensas são aqueles que os magistrados do Ministério Público mais gostam de investigar, ao lado dos crimes de papel (aqueles que se investigam analisando papelada) e dos crimes-click (aqueles que se investigam fazendo clicks na internet). Os crimes de ofensas são crimes de palavras. Todos os três tipos de crimes se investigam nos gabinetes, sem necessidade de sair à rua.

Reproduzo a seguir, de forma tentativa, a investigação criminal levada a cabo pelos magistrados do MP nos crimes que tenho vindo a referir. Começam por chamar testemunhas, e perguntar:

-O arguido pronunciou ou não pronunciou a palavra caralho?

Umas testemunhas dizem que sim, outras que não, outras ainda que não se lembram.

Passados uns meses, o MP chega à conclusão que mais lhe convém, que é a de que, na realidade, há indícios de que o arguido pronunciou a palavra caralho. Passa-se então à segunda fase da investigação, que é a mais complexa das duas.

É que, para haver crime, não basta que o arguido tenha pronunciado a palavra caralho. Segundo a jurisprudência estabelecida pelo célebre acórdão do TRL de 2010, se o arguido pronunciou a palavra caralho meramente como um expletivo (v.g., "Ai caralho!...que uma melga me mordeu…") não é crime. Mas se foi em discurso directo (v.g., "Vai para o caralho!"), aí já é crime.

Por isso, voltam-se a chamar as testemunhas agora para lhes perguntar:

-O arguido mandou o fendido para o caralho?

Como habitualmente, algumas dizem que sim, outras que não, outras ainda que não se lembram.

Dois anos depois, a investigação criminal está finalizada, a acusação formulada e o caso segue para tribunal.

Ao contrário dos agentes da Judiciária que andam por aí na rua a fazer investigação criminal em que arriscam a vida, enfrentado homicidas, terroristas e traficantes de toda a ordem, os magistrados do MP também são investigadores criminais, mas de gabinete.

É caso para dizer - agora com o respaldo da jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa -, que os magistrados do MP são uns investigadores criminais do caralho.

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