19 outubro 2019

O Juiz-Pistoleiro (18)

(Continuação daqui)


O Juiz-Pistoleiro
(Novela)

Cap. 18. Acusado


Eram nove e meia da manhã quando o juiz Francis dos Coldres, acompanhado da esposa, chegou ao tribunal de instrução criminal de Littlebushes para a sessão de abertura de instrução.

A abertura de instrução era um procedimento do processo penal deste país que permitia ao réu mostrar a sua inocência perante um juiz de instrução e, assim, evitar ir a julgamento.

À porta, estava uma rapariga de cabelo desgrenhado e ar  muito descuidado com uma pasta debaixo do braço e uns papeis na mão. 

O juiz sorriu ao vê-la, e disse-lhe:

-Olá Sandra Banessa… ainda vem que te encontro por aqui... preciso de um faborzinho teu…

porque o juiz, quando ia passar o fim de semana à terra, vinha sempre com o hábito de trocar os vês pelo bês e os bês pelos vês.

Acto contínuo, largou a mão da esposa, e foi-se meter num canto com a rapariga, que lhe deu uns papeis para assinar.

Quando regressou à companhia de Maria Eufémia, esta perguntou-lhe:

-Olha lá… quem é aquela lambisgoia!?…

O juiz explicou então que a Sandra Vanessa era uma jovem advogada que tinha acabado recentemente o estágio e que andava por ali aos caídos à espera que aparecesse um criminoso a necessitar de uma defensora oficiosa paga pelo Estado.  

Quinze minutos depois, tendo o juiz deixado o coldre e a arma com os seguranças, entraram os três para a sala de audiências, onde já se encontrava o escrivão, que lhes pediu para se levantarem quando o juiz entrasse.

Até que entrou a juíza Kate, uma mulher nos seus quarenta e muitos anos, cabelo impecavelmente arranjado e com um caríssimo anel no dedo. Atrás dela vinha um cavalheiro, também de toga, que, quem não estivesse habituado a estas andanças, julgaria que era também juiz, e que se sentou à direita da juíza.

Era o magistrado  do Ministério Público, Toni Castro, da família dos Castros de Felgueiras, e que era amigo do magistrado Toni Guimarães, da família dos Guimarães de Mirandela. Tratavam-se os dois por Toni's. Mas como Toni Castro não trazia nada escrito na testa, ninguém sabia desta amizade, excepto a juíza, que estava por dentro da tramoia que no Ministério Público se preparava ao juiz Francis dos Coldres.

A juíza Kate Ribero da família dos Riberos da Galiza, tomou a palavra e declarou que o réu era arguido pelo crime de micose da virilha, algo que Francis dos Coldres já sabia, e passou imediatamente a palavra à defesa.

Sandra Vanessa, que tinha feito parte do seu estágio no escritório de advocacia do Dr. Adriano, levantou-se e disse, com imponentes gestos das mãos e dos braços:

-Ilustríssima... Merítissima...Excelentíssima… Juíza Kate Ribero .. eu estou hoje aqui para dizer que o meu constituinte... também Excelentíssimo… Meritíssimo... Digníssimo Juiz… não cometeu em nenhuníssimo grau o crime de micose da virilha…absolutamente, nenhuníssimo!...

Enquanto a Sandra falava, o juiz Francis dos Coldres levantava-se, vagarosamente afastava as bandas do casaco, desapertava o cinto das calças e começava a desapertar também os primeiros botões da braguilha.

Foi nesse momento que a juíza Kate, sentada na tribuna, desatou ao gritos:

-Ai, ai, ai… ai, ai, ai… ai, ai, ai…,

sem nunca parar.

Todos ficaram em silêncio, e eram os berros da juíza que ecoavam pela sala do tribunal, agora mais pronunciados do que nunca…

-Aaaaaiiiiiiii … aaaaaaiiiiiii… aaaaaaaiiiiiiii…

E, foi, então, que Maria Eufémia, muito aflita, disse ao escrivão:

-O senhor, se faz favor... vá buscar um copo de água… que a senhora juíza ainda pode desmaiar…

Minutos depois, o copo de água resolveu o problema e a juíza recompôs-se. 

Explicou que era um trauma que lhe tinha ficado da juventude quando um dia, aos 15 anos, no eléctrico para a Baixa, um tarado decidiu despir-se em frente aos 73 passageiros.

Nunca mais a juíza Kate tinha podido ver um homem despir-se. Nunca mais.

Nunca casou.

O juiz Francis dos Coldres voltou a apertar as calças, e a juiza Kate, com um ar consternado, disse-lhe, cumprindo escrupulosamente as instruções do magistrado Toni Guimarães:

-Sabe... mesmo que lhe visse isso… não valia de nada … porque eu não sou dermatologista…

Foi nessa altura que Maria Eufémia, um pouco indignada, pediu a palavra para dizer à juíza em termos muito contundentes:

-Pois... senhora doutora juíza… mas eu posso testemunhar que o meu marido não tem micose na virilha!…

Nesse momento de tensão, o magistrado Toni Castro, que estava muito atento, interrompeu Maria Eufémia para lhe perguntar:

-E há quando tempo a senhora não vê a virilha ao seu marido?....

Maria Eufémia pensou, pensou, pensou e acabou por responder:

-Eu sei lá ...para aí há um ano…

O magistrado acenou afirmativamente com a cabeça, passou a palavra à juíza, e escreveu no seu bloco de notas:

-Incumprimento dos deveres conjugais (reiterado)... 

Perante toda esta evidência, a juíza deu por terminada a audiência.

Uma semana depois, através da sua advogada Sandra Vanessa, o juiz Francis dos Coldres recebeu o despacho de acusação assinado pela juíza Kate Ribero e pelo magistrado Toni Castro.

Neste país, na sua ilustre tradição penal, em caso de dúvida acusava-se o réu e depois, em julgamento, também se condenava o réu. Vigorava o princípio in dubio pro reo mas ao contrário.

O despacho de acusação fazia justiça à tradição. O juiz Francis dos Coldres iria ter mesmo de responder em tribunal. Nos termos do despacho, era acusado de 367 crimes, um de micose da virilha e 366 de incumprimento dos deveres conjugais, porque o último ano tinha sido bissexto.


(Continua aqui)

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