Desde a Encíclica Rerum Novarum (1891) do Papa Leão XIII, que deu início à Doutrina Social da Igreja, que o pensamento oficial católico se demarcou claramente dos dois sistemas económicos em confronto, o socialismo e o capitalismo (às vezes chamado liberalismo). E mesmo quando, cem anos depois, na Encíclica Centesimus Annus (1991), o Papa João Paulo II reconheceu a superioridade do capitalismo, nem aí deixou de qualificar a sua apreciação e de lhe impôr sérias reservas:
"(...) pode-se porventura dizer que, após a falência do comunismo, o sistema social vencedor é o capitalismo e que para ele se devem encaminhar os esforços dos países que procuram reconstruir as suas economias e a sua sociedade? É, porventura, este o modelo que se deve propor aos países do Terceiro Mundo que procuram a estrada do verdadeiro progresso económico e civil?
A resposta apresenta-se obviamente complexa. Se por «capitalismo» se indica um sistema económico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no sector da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de «economia de empresa», ou simplesmente de «economia livre».
Mas se por «capitalismo» se entende um sistema onde a liberdade no sector da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta é sem dúvida negativa" (CA: 42).
Seria difícil, talvez, na esfera estrita da economia, encontrar uma declaração mais favorável ao liberalismo económico e às suas instituições, como a empresa, o mercado e a liberdade de iniciativa. Ao mesmo tempo, invocando o Princípio da Subsidiaridade originalmente proposto pelo Papa Pio XI na Encíclica Quadragesimo Anno (1931), a Encíclica Centesimus Annus remete o Estado para o papel mais modesto que cada sociedade humana concreta pode comportar, que é o de só ser chamado a desempenhar as funções que todas as outras instituições sociais se mostrem incapazes de desempenhar [(CA: 48), reproduzido no Catecismo: ver aqui, Cat: 1882)].
Porém, mesmo assim, a Igreja recusa-se a passar um cheque em branco ao liberalismo: "Como vimos atrás, é inaceitável a afirmação de que a derrocada do denominado «socialismo real» deixe o capitalismo como único modelo de organização social" (CA: 35). Nem poderia ser de outro modo, e eu gostaria de tratar este tema tomando como referência a instituição ou processo social que está na base do liberalismo moderno - o mercado.
A Igreja imputa ao sistema social baseado na instituição do mercado muitas das críticas que são conhecidas, como a dificuldade em lidar com as chamadas externalidades (v.g., poluição), a incapacidade para produzir os chamados bens públicos, a tendência para excluir os jovens, os velhos e os incapazes, e uma certa propensão para gerar desigualdades sociais. Porém, a minha interpretação acerca da razão fundamental das reservas que a Igreja coloca a uma sociedade baseada primordialmente no mercado deve-se ao facto de o mercado (no sentido dos liberais modernos, como Mises, Friedman ou Hayek) ser um processo impessoal.
A Igreja possui certamente apreço pelos mercados locais, às vezes verdadeiras comunidades onde as pessoas se conhecem, e onde os benefícios que produzem estão ali visíveis aos olhos de toda a gente, nas múltiplas trocas entre consumidores e vendedores. Porém, à medida que o mercado alarga o seu âmbito tornando-se nacional e, mais ainda, global, ele deixa de ser pessoalizado, torna-se uma abstracção, e deixa de se saber ao serviço de quem ele está.
Um mercado nacional, e mais ainda um mercado global, em condições de concorrência, é um mercado onde participam milhões de pessoas, mas onde cada pessoa, por isso mesmo, tem um peso insignificante nos seus resultados finais (preços, quantidades produzidas, lucros das empresas participantes, quantidade de emprego gerado, etc.). Este mercado serve a quem e beneficia quem?
Os economistas respondem que um grande mercado impessoal não visa servir ou beneficiar alguém em particular, e nisso, dizem eles, reside a sua principal vantagem. Beneficia a sociedade como um todo, maximizando o bem-estar social (como medido, por exemplo, pela soma dos excedentes dos produtores e dos consumidores). A Igreja não pode aceitar esta resposta pela razão de que a sociedade não é uma pessoa - é uma abstracção - e o personalismo católico exige que as instituições e os processos sociais estejam ao serviço das pessoas, não de abstracções como a sociedade. É a sociedade que tem de estar ao serviço das pessoas, não as pessoas ao serviço da sociedade.
A segunda, e mais importante objecção, é a de que se o mercado é, na realidade, um processo impessoal, onde ninguém é responsável pelos seus resultados, então ele abre caminho à irresponsabilidade - a possibilidade de quaalquer dos seus intervenientes adoptar comportamentos que, sendo no seu interesse, são danosos para os outros e para toda a sociedade. Enquanto permanecerem isolados, estes comportamentos não têm importância nenhuma. Mas quando generalizados, não fica mesmo excluida a possibilidade de que o mercado livre conduza ao colapso da sociedade.
Por isso, a Igreja defende que o mercado tem de ser regulado. E se não aparecerem na sociedade instituições espontâneas que o façam, então terá de ser o Estado, subsidiariamente, a fazê-lo.
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