O leitor David Erlich teve a amabilidade de contraditar este meu post, invarialvelmente em torno da questão do estado. O comentário é longo, mas merece publicação e tentativa de refutação, que em virtude da complexidade dos temas abordados, aguardará melhor oportunidade.
"1. Antes de mais, quero mostrar o meu agrado pela pronta resposta de Rui A. Confesso que, por falta de tempo e não por desvalorização, sou alheio à leitura e debate na blogoesfera. Esta foi a primeira vez que decidi entrar num debate político “anónimo” – revelei o meu nome e é verdadeiro, mas a verdade é que ninguém sabe quem sou, nem eu sei quem é Rui A. E é com apreço que registo que não só Rui A. não fugiu ao debate como situou a discussão no plano da exposição séria de ideias. Num tempo em que o mediatismo é acusado de todos os males, essa tendência geral também devia olhar para a renovação que o mediatismo/novas tecnologias estão a trazer à troca de ideias, ao dinamismo das discussões.
2.Foucault diz-nos, por exemplo, que o termo Humanismo não é útil, isto é, é um termo que diversas correntes utilizam para se auto-descrever. Da mesma forma, não julgo útil discutir quem é liberal e quem não é; este conceito, tal como o de democrata, pode ser utilizado por correntes variadas, até antagónicas. Julgo que, para não entrarmos no debate inconsequente de quem é verdadeiramente “liberal”, devemos ao invés discutir que concepção do liberalismo serve melhor aquilo que julgamos ser a liberdade. Isto é, aceitemos a inevitável e irredutível pluralidade semântica. Assim, digo apenas que na História das Ideias Políticas de Lescuyer (sou estudante de C. Política, não cito os livros por falso pretenciosismo, mas sim porque os leio com avidez), Rousseau figura como liberal. Mas discutir quem cabe no conceito, em vez de discutir os nossos fundamentos – opostos – do próprio conceito, não me parece relevante.
3.Eu contesto uma premissa de Rui. A.; a que nos diz que o poder público é tendencialmente totalitário. Na sua contra-argumentação, o meu interlocutor afirma que a minha contestação a essa premissa não é eficaz já que, supostamente, a minha justificação é a de que a bondade dos detentores do poder impede essa tendência autocrática. Não é isso que afirmo, e tentarei mais uma vez contestar essa premissa, no parágrafo seguinte. E, pelo menos, acertei desde já na identificação dessa mesma premissa: Rui A. não a rejeitou, pelo contrário, concorda comigo quando eu digo que ele a adopta.
4.O conceito de poder público que aqui adoptamos é o de que o poder público é aquele que é exercido pelo Estado. Rui A. atribui uma natureza essencial e inevitável a esse poder público estatal: ele é tendencialmente autocrático, sempre. Ao invés, julgo mais pertinente definir esse poder público segundo o cariz democrático ou totalitário do Estado. Isto é, quando o poder público estatal é exercido por um Estado democrático, então não vejo como esse poder público pode ser autocrático. Ao dizer que o poder público é naturalmente autocrático/totalitário, pomos no mesmo saco o poder público exercido pelo Estado da Coreia do Norte e o poder público exercido pelo Estado Português. A minha tese é esta: o cariz democrático ou totalitário do poder público depende, respectivamente, do cariz democrático ou totalitário do Estado em nome do qual esse poder é exercido. Aqui, para efeitos de tentar definir o que é democracia, utilizo os sete critérios de Robert Dahl: cargos electivos para o controlo das decisões políticas; eleições livres, periódicas e imparciais; sufrágio universal; direito a ocupar cargos públicos; liberdade de expressão; existência e protecção, dada por lei, da variedade de fontes de informação; direito a constituir associações e organizações autónomas, partidos e grupos de interesse. Nós concordamos, quando Rui A. diz que “a natureza do poder público não depende, nem deve depender numa sociedade liberal, de quem o exerce circunstancialmente, mas da sua configuração jurídico-constitucional”. O problema é que, a meu ver, Rui A. cai numa contradição: por um lado afirma que "o poder público é, pela sua natureza, expansionista e totalitário", para depois afirmar que, afinal, a natureza do poder público depende “da sua configuração jurídico-constitucional”. Ou seja, primeiramente atribui ao poder público uma característica essencial e trans-temporal; depois, já faz depender as características do mesmo da sua configuração jurídica, existente num dado lugar e num dado momento.
5. Rui A. tem razão quando diz que nunca falou de uma sociedade sem Estado; o erro foi meu ao referir-me às suas declarações como sendo referentes tanto à defesa de uma sociedade sem Estado como à defesa de um Estado mínimo; elas, na realidade, apenas defendem esta última hipótese. Ora, quanto à defesa de um Estado Social eficaz ou de um Estado mínimo divergimos, e tentarei seguidamente contribuir para essa discussão específica.
6. Rui A. é muito hábil na defesa que faz do Estado mínimo para o nosso País. Eis a sua tese: se nas suas funções primordiais, segurança e justiça, o Estado não funciona bem, obviamente que isso se deve ao facto do Estado ter demasiadas funções. Isto é, o Estado Social contribui para a decadência do Estado juiz e polícia. Digo que Rui A. é hábil porque estabelece uma relação causal entre duas características de Portugal - existência de Estado social, por um lado, e justiça e segurança frágeis, por outro – quando essa relação causal não existe. Existem países onde o Estado Social é muito mais reduzido mas a insegurança muito maior (EUA). Existem países onde o Estado Social é mais eficaz e amplo que em Portugal e que têm menos insegurança e melhor justiça que a portuguesa. Ou seja, o Estado Social não prejudica o Estado polícia e juiz. Pelo contrário: ao contribuir para reduzir as desigualdades económicas, faz diminuir a potencialidade criminal que causa a ruptura da funções de justiça e segurança do Estado.
7. O meu pai e a minha mãe sempre foram atendidos no SNS, que já salvou a vida ao meu pai. Eu mesmo quase sempre recorri ao SNS. Estudo numa faculdade do Estado e frequento a Escola Pública desde o 5º ano. Olho à minha volta e vejo um Estado que apesar de defeitos graves, que devem ser corrigidos, tenta fazer com que todos tenham acesso à cultura, à educação, à saúde, à qualidade de vida, independentemente de terem nascido num berço de ouro ou num caixote de lixo. O Estado mínimo, no liberalismo inicial, já existiu. E a liberdade, caro Rui A., não era a de cada um ter a hipótese de realizar as suas potencialidades de vida. A liberdade era a de míudos a trabalhar 16 horas por dia, fábricas sem condições de higiene, educação para poucos e saúde para alguns, bairros fabris absolutamente indignos. Rui A.: julga sinceramente que sem Estado Social é possível garantir um mínimo de dignidade a todos os seres humanos? E julga sinceramente que a corrida da vida seria justa se, nascendo todos vindos de diferentes classes sociais, não houvesse um Estado Social que puxasse aqueles que estão na lama um pouco mais para cima, de modo a terem oportunidades? Concordo com algumas "doenças" que aponta ao "paciente", o Estado Social. Mas o desafio deve ser curar o paciente, não matá-lo.
8. Finalmente: o meu olhar sobre a história detecta que a progressão do alargamento das funções do Estado é parelelo, e não é por acaso, ao alargamento do sufrágio. Isto é, à medida que o sufrágio se foi universalizando, o Estado, cuja orientação política depende dos resultados dos sufrágios, foi obtendo novas funções sociais. Quando a democracia era censitária, o Estado era mínimo. E o alargamento da democracia conduziu ao Estado Social. Isto é, as pessoas querem o Estado Social. Assim, fica a pergunta, caro Rui. A.: defende o retorno ao Estado mínimo com a manutenção do sufrágio universal (o que a mim me parece impossível); ou, ao querer regressar ao Estado mínimo, também deseja regressar àquilo que o sustentava, isto é, a democracia censitária?"
"1. Antes de mais, quero mostrar o meu agrado pela pronta resposta de Rui A. Confesso que, por falta de tempo e não por desvalorização, sou alheio à leitura e debate na blogoesfera. Esta foi a primeira vez que decidi entrar num debate político “anónimo” – revelei o meu nome e é verdadeiro, mas a verdade é que ninguém sabe quem sou, nem eu sei quem é Rui A. E é com apreço que registo que não só Rui A. não fugiu ao debate como situou a discussão no plano da exposição séria de ideias. Num tempo em que o mediatismo é acusado de todos os males, essa tendência geral também devia olhar para a renovação que o mediatismo/novas tecnologias estão a trazer à troca de ideias, ao dinamismo das discussões.
2.Foucault diz-nos, por exemplo, que o termo Humanismo não é útil, isto é, é um termo que diversas correntes utilizam para se auto-descrever. Da mesma forma, não julgo útil discutir quem é liberal e quem não é; este conceito, tal como o de democrata, pode ser utilizado por correntes variadas, até antagónicas. Julgo que, para não entrarmos no debate inconsequente de quem é verdadeiramente “liberal”, devemos ao invés discutir que concepção do liberalismo serve melhor aquilo que julgamos ser a liberdade. Isto é, aceitemos a inevitável e irredutível pluralidade semântica. Assim, digo apenas que na História das Ideias Políticas de Lescuyer (sou estudante de C. Política, não cito os livros por falso pretenciosismo, mas sim porque os leio com avidez), Rousseau figura como liberal. Mas discutir quem cabe no conceito, em vez de discutir os nossos fundamentos – opostos – do próprio conceito, não me parece relevante.
3.Eu contesto uma premissa de Rui. A.; a que nos diz que o poder público é tendencialmente totalitário. Na sua contra-argumentação, o meu interlocutor afirma que a minha contestação a essa premissa não é eficaz já que, supostamente, a minha justificação é a de que a bondade dos detentores do poder impede essa tendência autocrática. Não é isso que afirmo, e tentarei mais uma vez contestar essa premissa, no parágrafo seguinte. E, pelo menos, acertei desde já na identificação dessa mesma premissa: Rui A. não a rejeitou, pelo contrário, concorda comigo quando eu digo que ele a adopta.
4.O conceito de poder público que aqui adoptamos é o de que o poder público é aquele que é exercido pelo Estado. Rui A. atribui uma natureza essencial e inevitável a esse poder público estatal: ele é tendencialmente autocrático, sempre. Ao invés, julgo mais pertinente definir esse poder público segundo o cariz democrático ou totalitário do Estado. Isto é, quando o poder público estatal é exercido por um Estado democrático, então não vejo como esse poder público pode ser autocrático. Ao dizer que o poder público é naturalmente autocrático/totalitário, pomos no mesmo saco o poder público exercido pelo Estado da Coreia do Norte e o poder público exercido pelo Estado Português. A minha tese é esta: o cariz democrático ou totalitário do poder público depende, respectivamente, do cariz democrático ou totalitário do Estado em nome do qual esse poder é exercido. Aqui, para efeitos de tentar definir o que é democracia, utilizo os sete critérios de Robert Dahl: cargos electivos para o controlo das decisões políticas; eleições livres, periódicas e imparciais; sufrágio universal; direito a ocupar cargos públicos; liberdade de expressão; existência e protecção, dada por lei, da variedade de fontes de informação; direito a constituir associações e organizações autónomas, partidos e grupos de interesse. Nós concordamos, quando Rui A. diz que “a natureza do poder público não depende, nem deve depender numa sociedade liberal, de quem o exerce circunstancialmente, mas da sua configuração jurídico-constitucional”. O problema é que, a meu ver, Rui A. cai numa contradição: por um lado afirma que "o poder público é, pela sua natureza, expansionista e totalitário", para depois afirmar que, afinal, a natureza do poder público depende “da sua configuração jurídico-constitucional”. Ou seja, primeiramente atribui ao poder público uma característica essencial e trans-temporal; depois, já faz depender as características do mesmo da sua configuração jurídica, existente num dado lugar e num dado momento.
5. Rui A. tem razão quando diz que nunca falou de uma sociedade sem Estado; o erro foi meu ao referir-me às suas declarações como sendo referentes tanto à defesa de uma sociedade sem Estado como à defesa de um Estado mínimo; elas, na realidade, apenas defendem esta última hipótese. Ora, quanto à defesa de um Estado Social eficaz ou de um Estado mínimo divergimos, e tentarei seguidamente contribuir para essa discussão específica.
6. Rui A. é muito hábil na defesa que faz do Estado mínimo para o nosso País. Eis a sua tese: se nas suas funções primordiais, segurança e justiça, o Estado não funciona bem, obviamente que isso se deve ao facto do Estado ter demasiadas funções. Isto é, o Estado Social contribui para a decadência do Estado juiz e polícia. Digo que Rui A. é hábil porque estabelece uma relação causal entre duas características de Portugal - existência de Estado social, por um lado, e justiça e segurança frágeis, por outro – quando essa relação causal não existe. Existem países onde o Estado Social é muito mais reduzido mas a insegurança muito maior (EUA). Existem países onde o Estado Social é mais eficaz e amplo que em Portugal e que têm menos insegurança e melhor justiça que a portuguesa. Ou seja, o Estado Social não prejudica o Estado polícia e juiz. Pelo contrário: ao contribuir para reduzir as desigualdades económicas, faz diminuir a potencialidade criminal que causa a ruptura da funções de justiça e segurança do Estado.
7. O meu pai e a minha mãe sempre foram atendidos no SNS, que já salvou a vida ao meu pai. Eu mesmo quase sempre recorri ao SNS. Estudo numa faculdade do Estado e frequento a Escola Pública desde o 5º ano. Olho à minha volta e vejo um Estado que apesar de defeitos graves, que devem ser corrigidos, tenta fazer com que todos tenham acesso à cultura, à educação, à saúde, à qualidade de vida, independentemente de terem nascido num berço de ouro ou num caixote de lixo. O Estado mínimo, no liberalismo inicial, já existiu. E a liberdade, caro Rui A., não era a de cada um ter a hipótese de realizar as suas potencialidades de vida. A liberdade era a de míudos a trabalhar 16 horas por dia, fábricas sem condições de higiene, educação para poucos e saúde para alguns, bairros fabris absolutamente indignos. Rui A.: julga sinceramente que sem Estado Social é possível garantir um mínimo de dignidade a todos os seres humanos? E julga sinceramente que a corrida da vida seria justa se, nascendo todos vindos de diferentes classes sociais, não houvesse um Estado Social que puxasse aqueles que estão na lama um pouco mais para cima, de modo a terem oportunidades? Concordo com algumas "doenças" que aponta ao "paciente", o Estado Social. Mas o desafio deve ser curar o paciente, não matá-lo.
8. Finalmente: o meu olhar sobre a história detecta que a progressão do alargamento das funções do Estado é parelelo, e não é por acaso, ao alargamento do sufrágio. Isto é, à medida que o sufrágio se foi universalizando, o Estado, cuja orientação política depende dos resultados dos sufrágios, foi obtendo novas funções sociais. Quando a democracia era censitária, o Estado era mínimo. E o alargamento da democracia conduziu ao Estado Social. Isto é, as pessoas querem o Estado Social. Assim, fica a pergunta, caro Rui. A.: defende o retorno ao Estado mínimo com a manutenção do sufrágio universal (o que a mim me parece impossível); ou, ao querer regressar ao Estado mínimo, também deseja regressar àquilo que o sustentava, isto é, a democracia censitária?"
Sem comentários:
Enviar um comentário