02 março 2009

estado de direito ou volonté générale?

Um outro leitor deste post fez um comentário interessante, que reproduzo parcialmente e passo a comentar:

Rui. A. parece aderir ao libertarismo, uma forma específica de libereralismo, uma espécie de neo-liberalismo. O libertarismo (Nozick, Hayek) auto denominou-se assim para se distinguir do liberalismo, que entretanto já se havia "socializado". Compreendo a sua posição, embora discorde. Parte de duas premissas erradas: 1) Que o poder público, independentemente das pessoas, instituições e processos em que asssenta, é sempre tendencialmente totalitário; 2) Que, sem Estado, ou com um Estado mínimo (justiça e segurança), a liberdade é alcançada por todos.

Porque é que estas premissas estão, a meu ver, erradas?

Porque o poder público democrático, seguindo a concepção de Rousseau, Rawls ou Rorty - que têm outros liberalismos, que não o seu, Rui (não monopolize para a sua concepção a designação liberalismo) - é regulado, indirectamente, pela via democrática. Isto é, assume, no geral, as formas que a população decide. Se a população decide, pela via democrática, ter o Estado Social, totalitário seria impor a inexistência de Estado Social contra a própria vontade do povo.”


Quanto à primeira asserção, a de que o poder público é sempre tendencialmente totalitário, nada encontro, no argumentário do nosso leitor, que me desdiga. O ponto é este: a natureza do poder público não depende, nem deve depender numa sociedade liberal, de quem o exerce circunstancialmente, mas da sua configuração jurídico-constitucional. Esta, em rigor, será mais ou menos rigorosa consoante a força da sociedade civil e a liberdade individual. Por outras palavras, fazer depender o poder público da bondade de quem o exerce e não de regras e limites objectivos, é um dos grandes perigos da democracia moderna. Sobre o tema sugiro a leitura de Popper.

Quanto à segunda asserção – a de que “sem Estado, ou com um Estado mínimo (justiça e segurança), a liberdade é alcançada por todos”, eu diria duas coisas: primeira, que em ponto nenhum do meu post o leitor encontrará a hipótese da inexistência do estado. Sei alguma coisa de História, para não conceber essa utopia; segunda, um estado mínimo que se concentrasse, de facto, em funções vitais para o bom funcionamento da sociedade, como aquelas que refere (justiça e segurança), seria bem mais eficaz e útil aos cidadãos do que um “estado máximo”, como o que temos em Portugal, onde, desgraçadamente, a segurança e a justiça são lastimáveis. É que à conta de tudo pretender, o dito “estado máximo” não cumpre minimamente aquilo para que foi criado e para que lhe pagamos. Se me provar o contrário, isto é, que a segurança e a justiça, em Portugal, são merecedoras de crédito, darei a mão à palmatória...

Por último, tenha lá paciência, mas entre os muitos nomes com que já ouvi apelidar Rosseau, liberal não o foi certamente. De Rawls e de Rorty é possível dizer quase tudo. Mas liberais, no sentido clássico do termo, também não me parece possível.

Por último, não é a “via democrática”, mas o direito, principalmente o direito constitucional e o direito privado, que devem “regular” o poder público. Aliás, deixe-me dizer-lhe, que nisto se encerram duas concepções radicalmente distintas do estado, enquanto ordenador do poder público: a do Estado de Direito e a do Estado da Soberania Popular. O primeiro assenta em regras gerais, abstractas, que correspondem à valoração ética do que deve ser o indivíduo e a sociedade. A segunda faz depender umas e outras da volonté générale rousseauniana, isto é, de quem está no poder, seja bom ou seja mau. É a diferença entre a Revolução Americana e a Revolução Francesa. Por mim, não hesito em escolher a primeira e condenar severamente a segunda. Mas, infelizmente, não ignoro que é esta última quem predomina na mentalidade do nosso poder soberano.

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