02 março 2009

nenhuma


No seguimento do meu post anterior, eu pretendo neste post caracterizar o impacto sobre o sistema judicial de um país de tradição católica (C) resultante da importação nesse país das instituições de um país de tradição protestante (P), que são as instituições da democracia-liberal.

Antes de o fazer, dois pontos. O primeiro para relembrar algumas das traves-mestras do sistema de justiça do país C na sua forma pura. Ele está organizado para condenar, não para julgar. Os casos que chegam aos tribunais são sobretudo casos de natureza penal, envolvendo um réu e um acusador. Os juizes são homens virtuosos. São formados para condenar - o homicida, o burlão, o larápio, o traficante, o devedor que não paga o que deve. A liberdade de julgamento que possuem é mínima. Segundo, relembrar que as instituições protestantes, e a sociedade protestante em geral, está baseada na litigação e é através da litigação que ela faz justiça, a qual é entendida como equidade.

A primeira consequência sobre o sistema judicial da sociedade C resultante da importação dos modos de vida ou cultura da sociedade P é que os tribunais vão ser invadidos por processos judiciais que envolvem litigação. Estes são processos em que não há reus nem acusadores, não há condenados nem penas, porque não há crimes em primeiro lugar. São processos em que as pessoas se dirigem aos tribunais pedindo equidade (justiça), solicitando que o tribunal aja como um árbitro em situações de conflitos de interesses. São as situações da divisão dos bens do casal em caso de divórcio, da diferente interpetação de uma cláusula contratual entre duas empresas e que prejudica uma delas, do contribuinte que recorre ao tribunal queixando-se do Fisco, não para pôr o Fisco na prisão, mas para que ele lhe devolva o dinheiro que abusivamente lhe cobrou.

Estes são processos que possuem uma natureza civil e um conteúdo frequentemente económico, em que se pede ao sistema judicial para julgar, não para condenar. São estes processos que vão agora encher os tribunais do país C, e os vão entupir. Porquê? Porque o seu sistema judicial não está preparado para julgar, está preparado para condenar. Não obstante, um esforço vai ser feito na sociedade para adaptar o sistema judicial ao aumento exponencial dos casos de litigação, por exemplo, empregando mais juizes e mais funcionários judiciais, especializando os tribunais.

Empregar juizes em massa degrada a imagem da justiça, porque o juiz típico da tradição católica é o homem virtuoso, e não existem homens virtuosos em massa no país. E não resolve o problema, porque os juizes novos vão ser formados pelos juizes mais velhos. Eles serão muito bons condenadores, mas muito maus julgadores, porque nunca foram formados para isso - julgar. Tanto mais que estando habituados a que a lei especifique, dentro de limites muito estreitos, o julgamento que devem proferir, os casos que agora lhes aparecem pela frente não se adaptam a essa cultura. Não há réus nem penas, não há condenações. Há pessoas perante o sistema judicial a pedir que se arbitrem conflitos e se produza equidade. Não é possível à lei dizer agora ao juiz o que deve fazer num caso de divisão dos bens do casal, ou como decidir no diferendo que opõe duas empresas acerca da interpretação de uma cláusula contratual. Ele é chamado a julgar - e isso a sua tradição nunca o habilitou a fazer. Aquilo que ele sabe melhor fazer é condenar, com a tabela das penas à frente frente.

Para dar vazão aos casos de litigação que agora enchem os tribunais vai ser preciso fazer algo mais no país C do que simplesmente empregar mais juizes e funcionários judiciais. Vai ser preciso dar plena liberdade de julgamento aos juizes, que é algo que eles nunca tiveram. E eles vão reclamá-la, quanto mais não seja invocando o exemplo dos países P. Esta "reforma" do sistema judicial será também acompanhada da orientação para que eles passem a julgar de acordo com o precedente ou a tradição, como se faz nos países P. O resultado vai ser catastrófico para o sistema de justiça do país C.

Num país de cultura católica, a justiça é subjectiva e está na decisão do juiz, não no precedente ou na tradição. Em resultado, o juiz do país C não aceita abdicar da sua decisão e julgamento pessoal, em benefício de qualquer critério, mesmo que seja objectivo. Para ele, a justiça é subjectiva, não é objectiva, está nele e em mais lado nenhum. Ele rejeita o precedente e produz a sua própria decisão. Não é de mais relembrar aqui que, entretanto, os juizes do país C deixaram de ser predominantemente homens virtuosos, e passaram a ser meros técnicos do Direito, às vezes muito jovens e formados à pressa para satisfazer as necessidades urgentes do sistema. Que característica se pode esperar das decisões destes juizes? Pelos menos uma - a enorme variância ou disparidade das suas decisões em relação a casos semelhantes. Ir a tribunal para decidir um caso de litigação passa a ser como jogar no totoloto. A ideia de equidade desaparece completamente do sistema de justiça - e era equidade precisamente aquilo que agora mais se pedia dele. Aos olhos do público, o sistema de justiça não faz justiça nenhuma.
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O mal ao sistema de justiça do país C seria já suficientemente grande se se ficasse por aqui, não conseguindo fazer bem aquilo que se lhe pede para fazer de novo. O pior é que ele deixa de fazer bem aquilo que fazia bem de velho - condenar. À medida que a filosofia que permeia o sistema passa a ser a de julgar, a qual pressupõe litigação, e não mais a de condenar, a qual pressupõe acusação, e se concede ao juiz maior liberdade de julgamento, ele vai condenar cada vez menos e, no limite, não condena de todo. Na tradição católica pura, o juiz decide entre duas partes - a acusação e a defesa - que ele olha de modo desigual, dando mais peso à acusação do que à defesa, e é assim que deve ser quando ele julga sobretudo crimes - homicídios, roubos, agressões, burlas, dívidas não cumpridas. A função da defesa é largamente a de implorar clemência ao juiz, que é um verdadeiro soberano no tribunal - a justiça é ele. Não é por acaso que a expressão pena tem em português um duplo sentido, apelando ao direito criminal e à clemência (ter pena, no sentido de ter dó ou ter piedade), umas das virtudes cristãs.
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Porém, à medida que os casos de direito penal são submergidos em número pelos casos de direito civil, e a nova filosofia (protestante) ganha ascendente sobre a antiga (católica), não só as duas partes em litígio passam a ter igual credibilidade aos seus olhos do juiz, como o juiz perde a sua função de soberano, exigindo-se-lhe agora que seja um árbitro, mais do que um soberano na sala de audiências. No direito penal, esta filosofia é uma catástrofe porque significa atribuir igual dignidade ao criminoso e à vítima e transformar o juiz num árbitro à procura de uma decisão imparcial entre o criminoso e a vítima, uma situação que agrade aos dois e acerca da qual nenhum se possa queixar. Quantas condenações será este juiz agora capaz de fazer, quando a filosofia do sistema passou a ser dominada pela equidade, e ele passa a procurar soluções de compromisso capazes de arbitrar entre os legítimos interesses da vítima e os legítimos interesses do criminoso? Muito poucas e, a prazo, nenhumas.
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(Nota: os dois últimos parágrafos foram acrescentados às 15:50) depois do comentário do José.)

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