Quando, há cerca de três semanas, escrevi este post, eu estava longe de imaginar que um acidente semelhante iria ocorrer em Portugal, e que ontem foi objecto deste post do Joaquim.
Ao escrever o post sobre o acidente do camionista português em Inglaterra eu pretendia contrastar o sentimento de justiça dos ingleses com o dos portugueses, já que tinha vindo a defender que a maior qualidade dos povos de cultura protestante (como os ingleses) é a sua capacidade para fazer justiça e o pior defeito dos povos de cultura católica (como os portugueses) é a sua incapacidade para a fazer.
O camionista português foi condenado a três anos de cadeia, com a possibilidade de sair em liberdade ao fim de ano e meio, e eu previ que se fosse em Portugal nada lhe aconteceria. Salientei também que, de acordo com o jornal que então citei, a opinião pública inglesa considerou a sentença muito leve.
Aquela previsão foi amplamente confirmada esta semana com as citações que o Joaquim inclui no seu post, e mais ainda pelos comentários ao post, acerca do acidente que recentemente vitimou uma criança por uma distracção de um adulto, que era seu pai, uma distracção em tudo semelhante à do camionista. Num caso, o camionista distraiu-se a olhar para um computador, no outro, um homem distraiu-se com as suas obrigações profissionais. Morreram seres humanos em consequência.
Procurarei neste post reproduzir a cultura, do ponto de vista do seu sentido de justiça, que levou o camionista a ser condenado em Inglaterra, mas que o levaria a não ser condenado em Portugal (O argumento seria análogo para o tema do post do Joaquim). Começo por Inglaterra. A justiça resulta da litigação. O papel da acusação (Ministério Público) é o de se colocar no lugar da vítima e litigar em nome dela (na realidade, houve seis vítimas). Eis a essência do diálogo:
Acusação: "Esse homem tirou-me a minha vida que era um bem valioso, para mim e para os meus. Peço retribuição."
Defesa: "Não foi de propósito. Juro que não foi de propósito. Eu ia meramente distraido ao volante a consultar o computador..."
Acusação: "Não me interessa se foi de propósito ou não. Interessa-me que foi em resultado de um acto dele que eu perdi a minha vida. Peço retribuição".
Defesa: "Retribuição para quê, se já ninguém lhe pode devolver a vida?"
Acusação: "É verdade que já ninguém me pode devolver a vida. Mas continuo a pedir retribuição. Não por mim, mas por todos os outros homens. Para que esse homem nunca mais cometa o acto que o levou a tirar-me a minha vida. E para que todos os outros saibam também que aquilo que ele fez não se pode fazer, porque tira vida inocentes. Peço retribuição em nome da humanidade".
Em Portugal, tudo seria diferente. A questão iria girar em torno da culpa:
Defesa: "Não tive culpa. Distraí-me a olhar para o computador e quando levantei os olhos já não consegui travar. Juro que não foi de propósito".
A partir de agora é uma discussão acerca do significado das palavras. A defesa insiste que a culpa pressupõe dolo ou intenção. A acusação vai buscar o dicionário da Porto Editora que também inclui na definição de culpa o "desleixo" e a "responsabilidade por um acto ou omissão repreensível ou criminosa". A defesa paga um parecer a um eminente jurista que ao cabo de 72 páginas considera que sem intenção não há culpa, ao mesmo tempo que argumenta que o dicionário da Porto-Editora está errado. Pedem-se pareceres a linguistas, compram-se dicionários mais caros, e quem estiver de lado a observar não pode senão comentar: "Que falta de sentido de justiça. Que desumanidade. Não sabem o que estão a fazer. Transformaram a discussão acerca do maior valor da humanidade - a vida humana - numa discussão acerca do significado das palavras. Eles, ou alguém da família deles, é que devia estar dentro do carro quando o camionista o trucidou".
Ao escrever o post sobre o acidente do camionista português em Inglaterra eu pretendia contrastar o sentimento de justiça dos ingleses com o dos portugueses, já que tinha vindo a defender que a maior qualidade dos povos de cultura protestante (como os ingleses) é a sua capacidade para fazer justiça e o pior defeito dos povos de cultura católica (como os portugueses) é a sua incapacidade para a fazer.
O camionista português foi condenado a três anos de cadeia, com a possibilidade de sair em liberdade ao fim de ano e meio, e eu previ que se fosse em Portugal nada lhe aconteceria. Salientei também que, de acordo com o jornal que então citei, a opinião pública inglesa considerou a sentença muito leve.
Aquela previsão foi amplamente confirmada esta semana com as citações que o Joaquim inclui no seu post, e mais ainda pelos comentários ao post, acerca do acidente que recentemente vitimou uma criança por uma distracção de um adulto, que era seu pai, uma distracção em tudo semelhante à do camionista. Num caso, o camionista distraiu-se a olhar para um computador, no outro, um homem distraiu-se com as suas obrigações profissionais. Morreram seres humanos em consequência.
Procurarei neste post reproduzir a cultura, do ponto de vista do seu sentido de justiça, que levou o camionista a ser condenado em Inglaterra, mas que o levaria a não ser condenado em Portugal (O argumento seria análogo para o tema do post do Joaquim). Começo por Inglaterra. A justiça resulta da litigação. O papel da acusação (Ministério Público) é o de se colocar no lugar da vítima e litigar em nome dela (na realidade, houve seis vítimas). Eis a essência do diálogo:
Acusação: "Esse homem tirou-me a minha vida que era um bem valioso, para mim e para os meus. Peço retribuição."
Defesa: "Não foi de propósito. Juro que não foi de propósito. Eu ia meramente distraido ao volante a consultar o computador..."
Acusação: "Não me interessa se foi de propósito ou não. Interessa-me que foi em resultado de um acto dele que eu perdi a minha vida. Peço retribuição".
Defesa: "Retribuição para quê, se já ninguém lhe pode devolver a vida?"
Acusação: "É verdade que já ninguém me pode devolver a vida. Mas continuo a pedir retribuição. Não por mim, mas por todos os outros homens. Para que esse homem nunca mais cometa o acto que o levou a tirar-me a minha vida. E para que todos os outros saibam também que aquilo que ele fez não se pode fazer, porque tira vida inocentes. Peço retribuição em nome da humanidade".
Em Portugal, tudo seria diferente. A questão iria girar em torno da culpa:
Defesa: "Não tive culpa. Distraí-me a olhar para o computador e quando levantei os olhos já não consegui travar. Juro que não foi de propósito".
A partir de agora é uma discussão acerca do significado das palavras. A defesa insiste que a culpa pressupõe dolo ou intenção. A acusação vai buscar o dicionário da Porto Editora que também inclui na definição de culpa o "desleixo" e a "responsabilidade por um acto ou omissão repreensível ou criminosa". A defesa paga um parecer a um eminente jurista que ao cabo de 72 páginas considera que sem intenção não há culpa, ao mesmo tempo que argumenta que o dicionário da Porto-Editora está errado. Pedem-se pareceres a linguistas, compram-se dicionários mais caros, e quem estiver de lado a observar não pode senão comentar: "Que falta de sentido de justiça. Que desumanidade. Não sabem o que estão a fazer. Transformaram a discussão acerca do maior valor da humanidade - a vida humana - numa discussão acerca do significado das palavras. Eles, ou alguém da família deles, é que devia estar dentro do carro quando o camionista o trucidou".
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