27 outubro 2008

as respostas do modernista (conclusão)

Aqui seguem as respostas do Modernista às duas últimas perguntas que lhe dirigi neste post. Queria agradecer-lhe a paciência que teve, bem como o contributo importante que deu a este debate e a todos quantos beneficiaram da leitura dos seus textos, como foi o meu caso. E passo, agora, a transcrever as suas respostas:

"6) O “bem” e o “mal” não podem ser definidos, pela razão aduzida pelo filósofo G. E. Moore há cerca de um século atrás: são propriedades básicas, como tal insusceptíveis de clarificação lógica. Isso não significa que não saibamos o que é o “bem” e o “mal”. Pelo contrário: são auto-evidentes. Um “bem” é uma finalidade da acção que não carece de qualquer justificação adicional; é uma condição necessária e suficiente para a justificação prática do agir. Um mal é o contrario, é uma finalidade que impede a realização do bem. A questão é então a de saber quais são as condutas boas, ou quais os bens humanos básicos. O que tentei fazer na resposta à sua primeira pergunta foi condenar a conduta homossexual como um “mal” porque afecta incondicionalmente a realização de dois bens fundamentais, ou básicos, para o ser humano: (a) a integridade moral da pessoa e (b) a amizade, nomeadamente a amizade conjugal. Tentei mostrá-lo através de duas formas. Por um lado, invocando directamente a importância dos bens em causa, tentando indicar a sua, por assim dizer, “força moral”. O meu trabalho estava facilitado porque ambos os bens mereceram tratamento aprofundado da pena de dois dos grandes filósofos: Platão e Aristóteles. Por outro lado, usei a analogia com a auto-mutilação, para mostrar , a partir de um ponto de vista interno aos nossos juízos morais sedimentados, i.e., as nossas intuições morais primárias, que “o mal” da auto-mutilação está na negação do bem da integridade moral, da unidade orgânica do ser humano, bem esse que também é negado pela conduta homossexual. E assim, lançando mão quer de um argumento geral quer da analogia de particulares, pratiquei o que julgo ser o método adequado de proceder na ética, uma actividade prudencial ou prática (e não teorética ou cientifica). Não tentei “provar”, mas persuadir; não apelei a “factos”, mas a juízos prudentes, razoáveis.

Passemos agora à “virtude” e ao “vicio”. Não se confundem com o “bem” e o “mal”. Uma virtude é um “hábito da alma” que dirige a conduta humana para o bem. Uma pessoa virtuosa é uma pessoa que adquiriu hábitos que a conduzem para a realização do bem. Por exemplo, a gula é um mal, porque resulta da sobredeterminação da acção pela inclinação da fome. Uma pessoa precisa de comer para viver e de estar bem nutrida para ter uma vida com qualidade – é essa a função da inclinação “fome” na pessoa integral, ordenada. Mas se a fome deixa de estar disciplinada e governada pelo intelecto (pela razão), adquire um peso desproporcional à sua correcta “função”. É um mal comer alarvemente porque afecta a realização da integridade moral – ou, como diria Aristoteles, a “eudemonia” – do ser humano. Mas uma coisa é percebermos isto, outra é agirmos com fundamento nessa percepção, nesse juízo. “De boas intenções está o inferno cheio”. Para passarmos, como a ética exige, do juízo para a prática, temos de saber controlar, ordenar, as nossas inclinações. E para isso que serve a virtude da temperança ou moderação. Essa virtude tem de ser adquirida, tem de estar, para usar uma metáfora, gravada na alma do individuo. O vicio é, como se pode ver, o oposto da virtude: a incapacidade de orientar a acção, a prática, para o bem. O mesmo se aplica ao problema da conduta homossexual. Para combater o impulso da atracção sexual por pessoas do mesmo sexo, para impedir que tal inclinação se assenhoreie da acção humana, não basta perceber porque é que é um mal. É necessário, por assim dizer, treinar os músculos morais do ser humano. Mais uma vez, é necessária temperança ou moderação (uma das virtudes cardeais, na linguagem técnica da filosofia clássica e escolástica). Essa exige toda uma educação moral, a educação para a virtude, que não se confunde com a educação teórica ou com a etiqueta social.

O que é “moral” ou “imoral” corresponde respectivamente ao que “deve ser” e ao que “não deve ser”. Ora, o que “deve ser”? O bem, pois claro. Mas a vida, a realidade pratica, é tão complexa e multifacetada que não é fácil perceber como é que dos bens básicos (e.g., a amizade) se retiram normas de conduta. Alem do mais, não é possível prosseguir todos os bens ao mesmo tempo. Para saber o que se “deve fazer” é necessaria a faculdade (intelectiva) da razoabilidade ou prudência. Esta não se confunde com a inteligência teórica. É uma virtude prática. Os juízos prudenciais podem, e devem, ser organizados sistematicamente, mas em si mesma a prudência não é uma faculdade apta a formar proposições teoréticas ou estruturá-las sistematicamente. A teoria moral tem limites óbvios, limites que toda a tradição moral moderna, quer a utilitarista quer a kantiana, largamente ignorou. A ética não é uma ciência, embora também não seja matéria de opinião ou uma arte expressiva. É o conhecimento prático do bem e do mal, ordenado sistematicamente tanto quanto possível.

Mas se não se pode inferir normas de conduta a partir de bens básicos, como é que eu pude condenar em absoluto a conduta homossexual? Porque quando uma conduta é orientada por um mal, quando se destina a prosseguir uma finalidade má, quando é directamente informada por um mal, não há duvida que ela é categoricamente má, o produto de um vicio. Tal como matar intencionalmente ou destruir o próprio corpo ou as faculdades mentais, a conduta homossexual é um mal categórico. A prudência basta-se nesse caso com a intuição do bem. (Como é evidente, mais uma vez o tema mereceria tratamento mais extenso e competente do que aquele que eu posso dar!)

7) O tópico é impensável – mea culpa, visto a pergunta que me faz ser a que eu lhe fiz antes – para um pequeno texto descontraído. Mas vou tentar responder o melhor que puder.

O ser humano tem uma natureza supra-material. Isso significa que o ser humano não pode ser reduzido aos elementos de uma interpretação mecânica do universo: matéria, inércia, impacto, causalidade, atomismo. Mas também rejeito que o ser humano tenha uma natureza dualista, a la Descartes, em que o “corpo” e a matéria, governada pela mecânica universal, e a mente e o “ego”, uma entidade misteriosa e metafisica. O ser humano e (a) uma vida (como tal, uma entidade orgânica, insusceptível de redução mecânica), (b) uma vida animal, e (b) uma animal racional. O que há de especifico, de distintivo, no humano, são as faculdades da inteligência e da vontade. O homem é um ser inteligente e livre, racional e moral.

A natureza humana é marcada pela racionalidade e liberdade. O homem é único na natureza por ser responsável por ordenar o seu ser, visto que só ele tem uma medida substancial de controlo sob os seus destinos. Cabe ao homem ordenar a sua “alma”. Mas essa ordenação não é arbitrária, ou o homem destrói a sua natureza. Se as inclinações ou o corpo escravizam a mente, ou a mente ignora os constrangimentos sensíveis e corporais, o homem embrutece-se, falha a sua realização enquanto ente. Pergunta-se então: E porque é que o homem há-de estar vinculado a essa “natureza”? Porque e que ele não há-de fazer o que entender sem se deixar governar pela sua natureza? Afinal de contas, sendo livre o homem deve puder reescrever o seu lugar no cosmos! Este é o grande desafio de Nietzsche e dos seus discípulos, como Foulcault. É aqui que temos de voltar a ética e abandonar, ainda que brevemente, a metafisica. É que a questão é moral: que dever impõe a natureza humana? Dizer que a natureza humana impõe deveres é uma falácia, porque resulta da errónea inferência de um dever-ser a partir de um ser. Temos de argumentar no plano normativo, no plano da ética. Voltando à ética, voltamos aos “bens básicos”. O homem é livre de não os prosseguir, mas se o não fizer será um ser com a unidade moral destruída. Essa fragmentação do ser humano impede a realização daquilo que Aristóteles chamava a “felicidade”, a “eudemonia”. Ela não se confunde com prazer, porque o prazer é contigente. A felicidade é o equilíbrio interno do ser humano na auto-reflexao da sua vida. Ora, quando terminamos o percurso que nos diz que certas coisas são boas e outras más, e que o caminho do bem é o caminho da harmonia e felicidade humanas, podemos comparar os resultados da ética com os da metafisica. E concluímos então, maravilhosamente, que a natureza humana, tal como defendida na metafisica, corresponde à realização ética do ser humano. Por outras palavras, que a ética conduz-nos à realização da nossa natureza; que o dever-ser está em harmonia com o ser. É quando nos apercebemos dessa harmonia extraordinária que percebemos que há uma extraordinária ordem das coisas. É também este, obviamente, um dos caminhos mais fecundos para descobrir o milagre da Criação.

Só uma nota final. Prazer e felicidade não se confundem. Mas não apenas porque o prazer é contingente. Pensemos na seguinte experiência mental. Há uma máquina – a máquina do prazer infinito – a qual nos podemos ligar de modo a obter, permanentemente e sem interrupções, prazer incondicional e permanente. Para o utilitarismo, é irracional não nos ligarmos à máquina. Mas será que nos queremos ligar? Será que o prazer incondicional é idêntico à felicidade humana? Eu proponho que seria moralmente absurdo, na verdade inequivocamente “mau”, ligarmo-nos à máquina. Todos os bens que dão sentido à nossa vida seriam asfixiados pela perseguição do prazer pelo prazer. A vida humana tem um sentido completamente diferente da busca do prazer. A felicidade humana reside noutro lugar. A natureza humana é outra que não a da hipóstase da sensação."

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