
2. E só por maldade congénita pode o Corcunda considerar Rousseau um inspirador do Liberalismo Clássico. Ele sabe bem que nenhum liberal o tem nessa conta, e que os principais autores do liberalismo clássico refutam a sua putativa influência. Como ele sabe, também, que em circunstância alguma um liberal defende a soberania ilimitada do Estado, seja qual for a sua origem ou «legitimidade». Para o liberalismo, nenhuma soberania ilimitada é legítima, ainda que decretada pelo sufrágio universal. Nós mesmos, aqui no Portugal Contemporâneo, temos vindo a assinalar reiteradamente as limitações naturais que a regra democrática deve conhecer numa sociedade livre, bem como temos escrito que a sua transformação em fim legitimador do poder político, em vez de permanecer como método legitimador dos governantes, conduziu às democracias totalitárias em que vivemos. A herança de Rousseau poderá, portanto, caber em muitos lados, mesmo até num certo liberalismo racionalista francês, que certamente terá inspirado. No liberalismo clássico, seguramente que não. Estas duas tradições encontram-se muito bem demarcadas. Entre nós, por exemplo, por José Manuel Moreira, que estudou e que escreveu abundamente sobre o assunto.
3. Não quero deixar de assinalar que o Modernista, no excelente «post» que aqui editou, colocou um conjunto de questões sobre as quais os liberais deveriam pensar e para as quais deveriam procurar respostas. Por mim, que não tenho a veleidade de as pretender conhecer a todas, não gostaria de deixar de dizer-lhe, por ora, que partilho da crítica de Hayek ao utilitarismo, que ele considera uma forma de construtivismo normativo, seja ele particularista (de acto), à Bentham, ou genérico (de regra), à Paley. Em ambos os casos, o problema é epistemológico: não podemos prever cabalmente os efeitos particulares das nossas acções. É exactamente por essa razão que existem normas de conduta: não por sermos capazes de prever as consequências de uma acção particular, mas precisamente pela razão inversa. É nesse contexto que me situo e é por essa mesma razão que, embora a saiba falível como qualquer outro sistema de interacção, me parece que a catalaxia, ou a ordem de mercado, poderá permitir que se encontrem melhores soluções para a generalidade dos nossos problemas, do que qualquer outro sistema onde operem intermediários. Voltarei, mais tarde, a algumas das questões levantadas pelo Modernista, não exactamente para as tentar «esclarecer», mas para as procurar compreender e interpretar à luz do liberalismo, tal como o vou concebendo.
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