11 dezembro 2007

a constituição da modernidade política

Devo dizer que acedo a este convite com muitas reservas. Por duas razões. Primeiro, porque não tenho a certeza que tenha mais a dizer do que o que já escrevi no Pasquim da Reacção. Eu sou uma criatura do domínio da Teoria, não da História.

Segundo, porque num blogue que se diz «liberal» e que e visitado pelos «liberais portugueses», como este, gostava de fazer outras perguntas e debater outras ideias. Gostava de saber, por exemplo, se o entusiasmo com a propriedade privada que floresce por estas bandas tem um fundamento ético-deontologico, na linha da doutrina dos direitos naturais, ou económico-utilitarista, como na teoria da coordenação dos austríacos.

E se for fundamentado nestas duas ordens de argumentos gostava de saber se os consideram duas fundamentações diferentes ou — será possível? — duas vertentes de uma única fundamentação. E depois queria mais debate sobre direitos de propriedade: O que é que uma ética dos direitos de propriedade tem a dizer sobre regras de apropriação do ar limpo? Ou sobre a regulação de actividades que geram riscos? Ou sobre servidões de passagem em diversas gradações de necessidade? Ou sobre a escolha entre proibir uma actividade ou forçá-la a internalizar custos sob forma de obrigação de compensar vitimas? Ou sobre a quantidade marginal proibida de uma actividade? Ou sobre a articulação das ideias «quem causa paga» e «damnum absque injuria»?

E sobre a economia austríaca: Se adoptar-mos uma teoria subjectivista do custo, como é que podemos criticar objectivamente a oferta massiva de bens públicos? Se a economia é uma ciência fundamentada em axiomas evidentes sobre a acção humana, porque e que a astronomia Copernica e superior a Ptolomaica (muito mais intuitiva) ou a teoria da relatividade a mecânica Newtoniana e esta a teoria dos vortex do Leibniz? E será que uma resposta razoavelmente bem sucedida a pergunta anterior pode fugir ao estigma temível do cepticismo Humiano? Se não, que tal saltarmos todos de um avião sem pára-quedas para desafiarmos a indução? E o que e que a catalaxia tem a dizer a uma teoria política — Aristóteles, Rosseau, Hegel e Marx, por exemplo — que rejeita, com fortes argumentos, o individualismo metodológico?

No entanto, a fraqueza humana e forte em mim e não consigo resistir ao simpático desafio do RA.

Começo por deixar três notas. A primeira é que não tenho acesso a um teclado português o que me obriga, para evitar deseconomias irracionais, a ignorar os acentos. Não há nada a fazer: o leitor que se amanhe*.

A segunda para sublinhar, com veemência, que este debate está dominado pelo amadorismo: a questão que estamos a discutir não á nem uma questão de historia das ideias — uma questão que dependa da exegese de um conjunto definido de textos-de-autor — nem uma questão de historia factual, que possa ser resolvida por um juízo sobre o valor de fontes documentais que representem factos empíricos. Pertence antes a um domínio historiográfico subtilmente complexo, que exige uma bagagem metodológica e histórica que não julgo ser carregada por qualquer dos intervenientes. De modo que estamos aqui num domínio bem perigoso para amadores: o domínio da historia do que certa historiografia, muitas vezes dominada por preconceitos metodológicos um tanto sinistros, chama historia das «categorias», «discursos» ou «representações».

A terceira nota e para chamar a atenção do leitor para o facto de que sobre estes temas há muita e boa bibliografia, a qual merece mais tempo e dedicação do que o meu post. O que sei sobre estes temas e sobretudo o que podem encontrar em: António Hespanha, CULTURAL JURIDICA EUROPEIA — SÍNTESE DE UM MILÉNIO; Maurizio Fioravanti, COSTITUZIONE; Maurizio Fioravanti, STATO E CONSTITUZIONE; Otto Brunner, LAND UND HERRSCHAFT. GRUNDFRAGEN DER TERRITORIALEN VERFASSUNGSGESCHICHTE OSTERREICHS IM MITTELALTER (há uma excelente tradução inglesa); Otto Von Gierke, POLITICAL THEORIES OF THE MIDDLE AGES. Como não sou historiador, esta lista e muito idiossincrática e limitada. Claro que estou a excluir fontes de pouca confiança, como, por exemplo, o malogrado Manual que ridicularizei no Pasquim.

O problema, tal como o vejo, e o problema da «constituição». Mas «constituição» aqui designa algo de mais amplo do que e habitual no pensamento jurídico-político e no senso comum modernos. Designa uma conjunto de traços fundamentais, referências simbólicas, conhecimento tácito, procedimentos e formas institucionais que «constituem» o imaginário politico.

O constitucionalismo moderno é uma forma de «constituição» neste sentido. Não é possível defini-la com maior rigor porque, tanto quanto me é dado ver, as alternativas que restam são «palavras de combate», que estão carregadas de uma carga metodológica e ideológica (muito)contestada: «estrutura», «paradigma», «modelo», «arquétipo», «tipo», «espírito», «forma de vida», «discurso», «episteme», etc.

Não estou com isto a fazer a apologia da «neutralidade», que considero uma falsa virtude, muito menos da sua versão kitsch no «politicamente correcto». Só não quero e desviar a atenção do problema que aqui nos preocupa. Um aspecto fundamental, no entanto, é que a «constituição» não é uma descrição no sentido comum da palavra: é uma articulação de traços gerais que dá lugar a concretizações muito diversas. Nos termos de uma certa tradição conceptual, e o que se pode considerar uma «linguagem» ou «gramática» que permite um conjunto quase ilimitado de «actos de fala» ou «frases».

Um apontamento metodológico. Citar um texto, particularmente um texto doutrinário, como o fez o RA, não resolve nada. Os romanos usavam as palavras «Estado» e «família», mas claro que seria absurdo interpretá-las como referências ao que hoje entendemos por «Estado» e «família». A família em Roma, por exemplo, incluía os escravos, os animais e todos os bens que pertenciam à «economia doméstica». Ora, o excerto de Phillipe de Beaumanoir é deliciosamente ambíguo: todas as noções que o RA identificou podem ser objecto das mais diversas interpretações, varias deles consistentes com a narrativa constitucional pré-moderna que vou resumir de seguida. Ao que há a acrescer o facto de que a noção de poder imperial nas fontes Romanas nada tem que ver com os conceitos políticos modernos de «Estado» e «soberania».

Alem do mais, estamos aqui a falar do imaginário político e não de «ideias politicas». As opiniões isoladas de um autor não são uma fonte credível neste género de discussão. O Maquiavel usou a palavra «Estado». Se a usou num sentido mais ou menos moderno ou não é uma discussão que ainda ocupa muito tempo de investigação académica. Mas que seja qual for a resposta não a usou de uma forma relevante para descrever a «constituição» do seu tempo e algo que me parece incontroverso.

Só uma leitura cruzada, diversificada, densa e ampla das fontes é que pode conduzir a reconstruções interpretativas plausíveis. Não que eu tenha mais a apresentar do que os resultados da investigação de outros: já confessei as minhas fontes, todas secundárias, porque nelas se pode encontrar a interpretação historiográfica dos textos e documentos antigos.

A «constituição» política medieval é a constituição de uma sociedade com uma ordem diversificada de poderes e funções. O rei é apenas um desses poderes e funções, um poder que é absoluto no interior da sua esfera de actividade legítima: a coordenação do corpo social. O poder régio e regulado, no seu aspecto mais fundamental, pelas doutrinas da tirania do titulo e do exercício: quem usurpa o poder régio não é rei legítimo; o rei que exerce o seu poder para criar «desordem» e «caos» — por outras palavras: corrompendo o seu papel social — tem de ser contrariado. O controlo da actividade régia — da «cabeça» do corpo social, de acordo com uma metáfora do Antigo Regime — passa por uma panóplia de recursos políticos que vão desde o controlo de «jurisdições» até ao tiranicídio.

O aspecto mais importante da «constituição» medieval é o estatuto jurídico das pessoas. O indivíduo político, titular de prerrogativas, não tem um papel relevante. O indivíduo «representa» um papel social — não porque exprime uma vontade alheia mas porque «está em lugar» de um «quid» que não pode estar presente. Os direitos e deveres são atribuídos a pessoas enquanto representantes de um estatuto. Cada estatuto é uma unidade jurídica que define uma esfera de actividade na fisiologia geral do corpo social. O corpo «funciona» quando as diversas esferas de actividade estão coordenadas na direcção do bem comum. Em certos períodos, o bem comum é a orientação de uma unidade politica amplíssima e complexíssima — a «Res publica Christiana». Mas a geografia do poder na Idade Media era, como se sabe, altamente instável.

A viragem paradigmática ocorre com a dissolução da constituição medieval e a emergência da política moderna. Para isso concorrem, reflexamente, ideias de proveniências temporais e intelectuais muito diversas, tais como: o nominalismo, o antropocentrismo, o racionalismo, o instrumentalismo. (Claro que para alem desta leitura «estruturalista» há alternativas «idealistas» e «materialistas»). O ponto de viragem simbólico é a emergência do indivíduo, da distinção público/privado, e a contraposição direito/poder. O despotismo iluminista, o jusracionalismo, o contratualismo — todos são criaturas políticas modernas.

Do ponto de vista sociológico — não o das elites letradas, as «cultas e polidas» porta-estandartes da «Nação», mas dos centros de poder — a centralização estadual nunca foi «absoluta». A resistência do poder «constituído» pelas formas constitucionais pré-modernas ao projecto de centralização foi notável e resiliente. Um «liberal» deveria interessar-se francamente por este aspecto. É que a soberania real e a soberania oficial raramente coincidem e com certeza não coincidiram até o Estado, já no séc. XIX, se dotar de uma aparelhagem burocrática, administrativa e militar com proporções megalómanas para os padrões de um Luís XIII ou de um D. José. O Estado tentacular e uma coisa muito recente. (E colocando agora entre parêntesis as questões de saber se (a) o Estado e, nos dias de hoje, realmente soberano no plano interno e (b) se faz sentido falar do “Estado”, ou para esses efeitos qualquer instituição, como se de um centro de decisão unipessoal se tratasse).

Outra história é a de saber quando é que a viragem paradigmática ocorre. Neste capítulo as coisas são difíceis: a história das grandes narrativas considera espúrias as alusões cronológicas. Eu diria, numa atitude cautelosa, que a modernidade politica só triunfa de forma decisiva entre 1648 — o fim da Guerra dos Trinta Anos — e 1789. Falar de modernidade politica no séc. XIII parece-me — insisto — um tremendo disparate.


O Modernista

* Que, entretanto, acrescentei. (RA)

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