Como era de calcular, o «post» sobre a pena de morte provocou algumas legítimas reacções de repúdio e algumas outras de cuidadosa reserva, consequência natural da violência da medida proposta e da tradição ocidental de considerar a sua abolição um sinónimo de civilização.
Entre as críticas e as questões suscitadas, há duas que merecem reflexão aprofundada: o de saber se a sanção criminal deve ter preponderantemente um valor retributivo, preventivo ou correctivo; e se, do ponto de vista liberal, é legítimo aceitar que o «Estado» possa punir alguém com um tão grave castigo. Vamos, então, a elas.
Uma das falácias de uma certa mentalidade jurídico-penal é a de que todos os criminosos são, no essencial, iguais na sua humanidade, logo devem merecer a esperança de recuperação, independentemente da natureza dos seus crimes. O que varia, aqui, segundo esta perspectiva, é medida da pena, maior ou menor consoante o tipo de crimes e a sua gravidade. Porém, no limite, como todos os homens são iguais e, por isso, são merecedores, todos eles, da oportunidade de se redimirem, são proibidas as penas de morte e de prisão perpétua. Esta perspectiva assenta num ideal quase rousseauniano, segundo o qual os homens são tendencialmente bons e propensamente corrompidos pela sociedade. No auge da loucura dominante desta mentalidade, nos anos 60 e 70 do século passado, era comum dizer-se que a culpa do crime era da sociedade, nunca do criminoso. Muitos ordenamentos jurídicos reflectiram, em tempo, esta ideologia e quase todos se mantêm, ainda hoje, reféns dela, mesmo que em menor grau.
Sem dúvida que num acto criminoso podem ocorrer, em concreto, mil e uma circunstâncias e motivos. Uma lei equilibrada e uma justiça sensata e bem preparada pode prever essas causas, dando-lhes importância atenuante ou agravadora do comportamento do agente, conforme as circunstâncias, daí resultando, a jusante, sentenças mais ou menos severas.
Todavia, não é disto que estamos a falar, mas, do ponto de vista liberal, de uma outra coisa: a de saber se uma sociedade livre que quer, e tem direito, à segurança, deve ou não conceder a oportunidade de regeneração a todos os criminosos, sem excepção, expondo-se à repetição dos actos e, pior do que isso, a que quem está disposto a praticá-los conte antecipadamente com este nível de tolerância por parte das suas vítimas. Mais uma vez, segundo a perspectiva abolicionista, a ideia é a de que todos merecem uma segunda oportunidade.
Do ponto de vista liberal, em minha opinião, uma sociedade tem o direito de, em certos casos, não conceder esse direito a quem ultrapassa os limites mínimos da vida em sociedade. Presume-se, naturalmente, a plena consciência e a total racionalidade dos comportamentos, e não aqueles que são enquadráveis em desequilíbrios emocionais ou psíquicos, momentâneos ou permanentes. Por isso, se deu como exemplo de um tipo legal de crime merecedor da pena de morte, a violência extrema exercida sobre quem não pode defender-se – as crianças, que significa raptá-las para fins abjectos como a prática de actos de pedofilia, isto é, condenar seres inocentes e indefesos a um horror que me parece francamente impossível de ultrapassar.
Nestes casos, e retomamos as questões suscitadas ao «post» anterior, é ou não legítimo, de um ponto de vista liberal, que uma comunidade se queira defender e defender os seus filhos. Ou não será a segurança, isto é, a necessidade dela, que fundamenta o contrato social proposto por Locke? Obviamente que, como escreveu o João Miranda, a retribuição penal é também admissível numa óptica liberal, podendo mesmo ser valorada como o princípio fundamental de uma política liberal para o crime. Mas, antes dela, existe a segurança, sem a qual o liberalismo não concebe a necessidade da organização política da sociedade: segurança das pessoas e da sua propriedade. Por isso e neste caso, a pena de morte será mais uma forma de prevenção social do que um castigo do infractor.
E aqui entronca a última objecção: a de que um liberal aceite que o Estado possa punir um homem com a pena de morte. A questão está, a meu ver, mal posta Para o liberalismo, a justiça é uma emanação natural da sociedade. Resulta, as normas jurídicas e a sua aplicação, de necessidades naturalmente sentidas pelos seres humanos em contexto social. Saber se o Estado deve, ou não, ter o monopólio da justiça (da enunciação das normas jurídicas e da sua aplicação) é já uma outra questão. Mas nada tem a ver com a admissibilidade ou não da pena capital.
* Estes «posts» têm sido escritos sob a pressão dos factos ocorridos com a pequena Madeleine, que alguns criminosos raptaram para, segundo se noticia, a condenarem à escravidão sexual. Uma criança de quatro anos, privada dos seus pais, da sua alegria, do seu direito a crescer livremente. Parece que os criminosos a teriam já «marcado» desde o seu embarque em Inglaterra, que a seguiram desde aí, executando o «plano» no Algarve. Ou seja: tratam-se de adultos a violentar conscientemente uma criança de quatro anos e a condená-la ao terror máximo de ser física e moralmente violada por adultos, e não exactamente de um tarado qualquer que agiu sob um impulso abjecto. Será possível conceber perdão e arrependimento para tipos deste quilate? Deve uma sociedade dar uma segunda oportunidade a gente desta? E, já agora, que oportunidade?
Entre as críticas e as questões suscitadas, há duas que merecem reflexão aprofundada: o de saber se a sanção criminal deve ter preponderantemente um valor retributivo, preventivo ou correctivo; e se, do ponto de vista liberal, é legítimo aceitar que o «Estado» possa punir alguém com um tão grave castigo. Vamos, então, a elas.
Uma das falácias de uma certa mentalidade jurídico-penal é a de que todos os criminosos são, no essencial, iguais na sua humanidade, logo devem merecer a esperança de recuperação, independentemente da natureza dos seus crimes. O que varia, aqui, segundo esta perspectiva, é medida da pena, maior ou menor consoante o tipo de crimes e a sua gravidade. Porém, no limite, como todos os homens são iguais e, por isso, são merecedores, todos eles, da oportunidade de se redimirem, são proibidas as penas de morte e de prisão perpétua. Esta perspectiva assenta num ideal quase rousseauniano, segundo o qual os homens são tendencialmente bons e propensamente corrompidos pela sociedade. No auge da loucura dominante desta mentalidade, nos anos 60 e 70 do século passado, era comum dizer-se que a culpa do crime era da sociedade, nunca do criminoso. Muitos ordenamentos jurídicos reflectiram, em tempo, esta ideologia e quase todos se mantêm, ainda hoje, reféns dela, mesmo que em menor grau.
Sem dúvida que num acto criminoso podem ocorrer, em concreto, mil e uma circunstâncias e motivos. Uma lei equilibrada e uma justiça sensata e bem preparada pode prever essas causas, dando-lhes importância atenuante ou agravadora do comportamento do agente, conforme as circunstâncias, daí resultando, a jusante, sentenças mais ou menos severas.
Todavia, não é disto que estamos a falar, mas, do ponto de vista liberal, de uma outra coisa: a de saber se uma sociedade livre que quer, e tem direito, à segurança, deve ou não conceder a oportunidade de regeneração a todos os criminosos, sem excepção, expondo-se à repetição dos actos e, pior do que isso, a que quem está disposto a praticá-los conte antecipadamente com este nível de tolerância por parte das suas vítimas. Mais uma vez, segundo a perspectiva abolicionista, a ideia é a de que todos merecem uma segunda oportunidade.
Do ponto de vista liberal, em minha opinião, uma sociedade tem o direito de, em certos casos, não conceder esse direito a quem ultrapassa os limites mínimos da vida em sociedade. Presume-se, naturalmente, a plena consciência e a total racionalidade dos comportamentos, e não aqueles que são enquadráveis em desequilíbrios emocionais ou psíquicos, momentâneos ou permanentes. Por isso, se deu como exemplo de um tipo legal de crime merecedor da pena de morte, a violência extrema exercida sobre quem não pode defender-se – as crianças, que significa raptá-las para fins abjectos como a prática de actos de pedofilia, isto é, condenar seres inocentes e indefesos a um horror que me parece francamente impossível de ultrapassar.
Nestes casos, e retomamos as questões suscitadas ao «post» anterior, é ou não legítimo, de um ponto de vista liberal, que uma comunidade se queira defender e defender os seus filhos. Ou não será a segurança, isto é, a necessidade dela, que fundamenta o contrato social proposto por Locke? Obviamente que, como escreveu o João Miranda, a retribuição penal é também admissível numa óptica liberal, podendo mesmo ser valorada como o princípio fundamental de uma política liberal para o crime. Mas, antes dela, existe a segurança, sem a qual o liberalismo não concebe a necessidade da organização política da sociedade: segurança das pessoas e da sua propriedade. Por isso e neste caso, a pena de morte será mais uma forma de prevenção social do que um castigo do infractor.
E aqui entronca a última objecção: a de que um liberal aceite que o Estado possa punir um homem com a pena de morte. A questão está, a meu ver, mal posta Para o liberalismo, a justiça é uma emanação natural da sociedade. Resulta, as normas jurídicas e a sua aplicação, de necessidades naturalmente sentidas pelos seres humanos em contexto social. Saber se o Estado deve, ou não, ter o monopólio da justiça (da enunciação das normas jurídicas e da sua aplicação) é já uma outra questão. Mas nada tem a ver com a admissibilidade ou não da pena capital.
* Estes «posts» têm sido escritos sob a pressão dos factos ocorridos com a pequena Madeleine, que alguns criminosos raptaram para, segundo se noticia, a condenarem à escravidão sexual. Uma criança de quatro anos, privada dos seus pais, da sua alegria, do seu direito a crescer livremente. Parece que os criminosos a teriam já «marcado» desde o seu embarque em Inglaterra, que a seguiram desde aí, executando o «plano» no Algarve. Ou seja: tratam-se de adultos a violentar conscientemente uma criança de quatro anos e a condená-la ao terror máximo de ser física e moralmente violada por adultos, e não exactamente de um tarado qualquer que agiu sob um impulso abjecto. Será possível conceber perdão e arrependimento para tipos deste quilate? Deve uma sociedade dar uma segunda oportunidade a gente desta? E, já agora, que oportunidade?
5 comentários:
A respeito da Madelaine, eu duvido muito da tese do rapto para escravidão sexual - facilmente se arranjaria raparigas daquela idade e tipo fisico na Europa de Leste sem essas complicações.
Mesmo para criminosos “irrecuperáveis”, o degredo perpétuo parece-me sempre preferivel à pena de morte (nomeadamente para o caso de erros judiciários e, também, porque não é possível ter a certeza abosoluta de quem é ou não “recuperável”).
Com degredo perpétuo refiro-me às pessoas estarem encerradas numa ilha ou numa cidade vedada, fazendo uma vida quase normal (incluindo trabalhar e talvez pagar impostos), só que sem poderem sair de lá.
Começamos pelo fim?
«Estes «posts» têm sido escritos sob a pressão dos factos ocorridos com a pequena Madeleine, que alguns criminosos raptaram para, segundo se noticia, a condenarem à escravidão sexual.»
Tenho certeza que não me vai fazer explicar por que é que não se deve legislar sobre casos concretos, para mais aqueles que, de tão hediondos, estão em melhores condições de deturpar o nosso espírito.
«Será possível conceber perdão e arrependimento para tipos deste quilate? Deve uma sociedade dar uma segunda oportunidade a gente desta? E, já agora, que oportunidade?»
Para quem defende a desumanidade da pena de morte (pelo menos para mim), não se trata de conferir perdão ou tentar "reabilitar" ninguém. De resto, o RA não me conhece, mas qualificar-me, a mim, como rousseauniana, tem a sua piada. Sou das pessoas mais cépticas da natureza humana com que alguma vez se há-se cruzar.
Assim, cai por terra o seu primeiro pressuposto: «Uma das falácias de uma certa mentalidade jurídico-penal é a de que todos os criminosos são, no essencial, iguais na sua humanidade, logo devem merecer a esperança de recuperação, independentemente da natureza dos seus crimes»
A minha negação da pena de morte prende-se com o grau de humanidade dos membros de uma sociedade e não dos seus criminosos (e agora para o agastar, acrescentaria que, por isso, é que o grau de civilidade de uma sociedade se mede também em função do modo como tratam os seus animais).
Depois, não subscrevo a ideia que a responsabilidade penal recai sobre a sociedade e não sobre o agente - o que não é o mesmo que dizer que o historial social do agente é irrelevante.
Ademais, estou longe da crença ingénua de que um criminoso é sempre passível de "reabilitação" (seja lá isso o que for), mas não deixo de acreditar que é no interesse da comunidade em geral que, quando essa seja uma possibilidade, diminuir os riscos da reincidência.
Mas reconhecer a impossibilidade de "recuperer" um criminoso não é condição suficiente para justificar a sua condenação à morte! Isto seria uma espécie de eugenia social.
Depois quando diz:
«Do ponto de vista liberal, em minha opinião, uma sociedade tem o direito de, em certos casos, não conceder esse direito a quem ultrapassa os limites mínimos da vida em sociedade»
Salvo o devido respeito, a sociedade não tem de conceder uma "segunda oportunidade" ao agente se isso significa, uma segunda oportunidade para incorrer no mesmo crime - não tem é o direito (por facilitismo) de lhe subtrair a vida.
E isto: «Nestes casos, e retomamos as questões suscitadas ao «post» anterior, é ou não legítimo, de um ponto de vista liberal, que uma comunidade se queira defender e defender os seus filhos. Ou não será a segurança, isto é, a necessidade dela, que fundamenta o contrato social proposto por Locke?»
Vai-me desculpar, mas é pura demagogia. Antes de discutir a pena de morte, tinha de discutir a prisão perpétua, a castração química, a monitorização dos agressores sexuais após o cumprimento das penas... mas o RA salta logo para a pena de morte.
Por último, rogo-lhe que responda à questão que lhe coloquei lá em baixo: Dá como garantido que a aplicação da pena de morte, empiricamente, tem diminuído a criminalidade nos Estados em que é aplicada?
O que é totalmente inacreditável e irresponsável é alguém poder considerar que violação é tão ou mais grave que o homicídio.
Mais um post de antologia.
Partilho da mesma opinião. Inteiramente.
Abraço
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