11 maio 2007

pelo retorno da pena de morte

No Direito Criminal, a teoria da pena foi-se encaminhando, ao longo dos tempos, para a humanização da sanção aplicada a quem cometia uma infracção susceptível de qualificação penal, e pela valoração conjugada e equilibrada de dois princípios fundamentais: o da punição (meramente repressiva ou preventiva) do acto praticado e do seu agente, e o da reinserção social e recuperação humana deste último.
O primeiro princípio foi, durante séculos, o único a orientar o regime penal, primeiro, através da «vindicta privada», pela qual os ofendidos ou os seus herdeiros podiam infligir ao criminoso um mal pelo menos igual ao praticado, e mais tarde pela usurpação do Estado do monopólio de castigar. O segundo veio a desenvolver-se a partir do século XVIII, sob a influência do humanismo europeu de setecentos, e do humanitarismo jurídico daquele século e do que se lhe seguiu. Assenta nas ideias, mais do que defensáveis, de que a vida humana é sagrada (influência óbvia do pensamento cristão), de que nenhuma autoridade política tem legitimidade para retirar a vida a um homem, e que, no limite, por mais abjectos que sejam os actos sob condenação, é sempre possível manter a esperança da recuperação e reinserção social de quem os praticou. Em última análise, trata-se, aqui também, da velha ideia cristã de que o arrependimento está ao alcance de todos os homens e, por consequência, também deve estar o perdão.

Quando o Estado, nos fins da Idade Média, começa a ganhar os contornos que lhe viriam a conferir a sua modernidade, a «vindicta privada» torna-se proibida e só ele passa a poder punir. Na pena de morte, o Estado mantém a maior parte dos crimes que anteriormente a previam, como o homicídio, desenvolve alguns novos, como a feitiçaria, e cria o crime de lesa-magestade, mais tarde substituído pelo de traição grave à pátria, sobretudo em circunstâncias de excepção como a guerra. Em todo o caso, os abusos frequentemente cometidos pela administração destes últimos tipos legais de crimes, os que são contra o Estado, representando, este, a comunidade, e, aqueles, actos que põem em causa a segurança de todos, levaram a que os Estados totalitários utilizassem frequentemente a pena de morte por razões políticas ignóbeis, quase sempre escondidas sob o manto diáfano do execrando francesismo da «raison d’État».

Curiosamente, foram estes últimos crimes (contra o Estado) a conhecerem a abolição mais tardia da pena de morte. Ao invés, a generalidade dos crimes políticos e civis foram vendo progressivamente as penas de morte que lhes correspondiam nalguns países substituídas por outras penas de prisão. Em Portugal, que a aboliu para os crimes políticos em 1852, para crimes civis alguns anos mais tarde, em 1867, nos crimes de traição ao Estado só o fez em 1911, tendo sido reposta logo em 1916 para os crimes militares (embora nunca aplicada), e definitivamente expurgada do nosso ordenamento jurídico em 1976. Portugal considera-se, assim, um dos primeiros países a ter abolido essa infâmia e orgulha-se disso. Eu penso, porém, que está na altura de ponderar seriamente o seu regresso, não para crimes políticos, menos ainda para os crimes contra o Estado, mas para alguns crimes praticados contra quem não pode em circunstância alguma defender-se: as crianças. A ideia pode parecer absurda, desumana e imprópria de um espírito liberal. Penso, porém, exactamente o contrário.

Se, como Gary Becker pareceu ter demonstrado na aplicação da teoria económica ao crime, muitos agentes criminosos agem com plena consciência dos seus actos, isto é, sabendo perfeitamente o que estão a fazer, e fazem-no para obter uma compensação imensamente superior ao risco que estão dispostos a correr, então, para estes casos, só a ameaça de um castigo muito superior ao lucro que pretendem obter os poderá inibir de agir.
Imagine-se que alguém que rapta uma criança para a comercializar no mundo abjecto da pedofilia, agindo apenas com o fim de obter uma compensação pecuniária para si. Não há, provavelmente, por mais que nos esforcemos, ideia mais abjecta e repelente do que atacar uma criança, tirar-lhe a sua liberdade, a sua alegria, a companhia dos pais, e condená-la ao terror e à escravidão sexual. Uma criança, ao contrário de um adulto, não sabe, não pode, defender-se. Existem relatos de imagens de crianças de meses, ainda bebés, a serem sexualmente molestados, violados até. Com crianças de dois, três, quatro e mais anos, isso parece ser, desgraçadamente, muito frequente. Se a oferta dessas vilezas é abundante, é porque ela dispõe de um mercado consumidor de tarados numeroso. Admito que em relação a estes últimos, aqueles que praticam semelhantes actos e os que se satisfazem a observá-los, não haja lugar à pena de morte. Em regra, tratam-se de dementes, no mínimo de pessoas desequilibradas, e, por isso, a referida esperança na recuperação e, até, no arrependimento, deve presidir à determinação da natureza e da medida da sanção punitiva. Contudo, para quem friamente faz do rapto de crianças um negócio, para quem age friamente, sem estar sob o domínio de pulsões doentias, sabendo perfeitamente o que está a fazer e o destino que será dado a alguém que não pode (e provavelmente não poderá nunca) defender-se, para quem comete um acto cuja ignomínia não tem igual, só uma ameaça muito séria poderá hesitar: a da sua própria morte. Nestes casos, não só a teria como muito bem vinda, como a acharia mesmo justa e humana.

12 comentários:

SV disse...

Devo confessar-lhe que me sinto profundamente incomodada por alguém, com quem nem sempre concordo mas que gosto de ler, vir defender a anormalidade do retorno da pena de morte.

Em primeiro lugar, a legitimidade das penas penais (por gravíssimas) apenas se pode encontrar fundamento para na sua funcionalidade. Como bom liberarl, devia dar de barato que não se limitam liberdades indiciduais por "dá cá aquela palha".
Historicamente, evoluiu-se de uma concepção retributiva das penas (a pena como castigo - e foi aqui que rompi relações com Kant!) para uma concepção preventiva.
As penas justificam-se então numa lógica de prevenção geral (promovem a paz social e "protegem a sociedade dos seus criminosos); ou de prevenção especial (com vista à "reabilitação" do agente e com um efeito dissuasor da prática de novos actos criminosos).

Nenhum liberal poderá alguma vez defender a aplicação de uma pena por mera retribuição (da retribuição não resulta inerentemente qualquer benefício para a sociedade, pelo que esta não pode ser justificação para o coarctar de liberdades individuais); mas em abono da sua posição, também não me parece ser isso que defende: de facto, você parece querer defender a aplicação da pena de morte com a finalidade de dissuadir o agente de incorrer na prática do crime (adopta, portanto, uma lógica de prevenção especial negativa).

Mas aí é que a sua tese falha:

1. Do ponto de vista sociológico:

Indique-me um estudo sério que relate a diminuição da criminalidade em estados (por exemplo norte americanos) onde se aplica a pena de morte - não me vai, de resto, convencer que os Estados europeus onde não se aplica a pena de morte têm mais criminalidade ou criminalidade violenta que Estados (por exemplo muçulmanos) onde se continuam a aplicar a pena de morte e outras penas desumanas;

2. Do ponto de vista filosófico:

Onde é que encontra legitimidade para um qualquer Estado ir além do que lhe é estritamente necessário para acautelar a vida em sociedade, e implementar a pena de morte?


Se não encontra suporte filosófico para a aplicação da pena de morte; se não consegue demonstar que esta traz algum benefício para a vida em sociedade, então, não pode concluir como conclui.

Anónimo disse...

Caro SV,

Repare que o meu ponto não é o da utilização da pena de morte como forma de dissausão geral em relação aos crimes graves. Muitos desres, a maior parte, são praticados por pessoas diminuidas e, por isso, não se lhes deve aplicar uma sanção cuja extrema gravidade pressupõe, pelo menos, a plena consciência do agente.
Acho, porém, que ela pode - e pode, de facto - dissuadir quem faça do crime uma profissão como outra qualquer. Se essa "profissão" puser gravemente em causa aquilo que é mais sagrado em qualquer sociedade humana ou animal, as crianças (veja que até os animais protegem as suas crias tenazmente), acho, aco, sim, que a ameaça da pena de morte pode, de facto, funcionar. Não falo, note, em inimputáveis, nem sequer em tarados, mas em pessoas perfeitamente conscientes dos seus actos e implicações, que escolhem ter como actividade "profissional" molestar crianças de forma grave e animalesca.
De resto, permita-me que refute a sua ideia de que os liberais não defendem a pena de morte. Defendem, até, a "vindicta privada". Veja o caso de Rothbard, por exemplo, e a generalidade dos "libertarians" norte-americanos.

Cimprimentos,

RA

Patrícia Lança disse...

Não é meu hábito citar textos sagrados. Neste caso, prefiro o Evangelho Segundo S. Lucas, 17,2, a qualquer argumento económico ou filosófico. Jesus, que normalmente pregava perdão e misericórdia foi intransigente quanto a crimes contra crianças: "Melhor seria que lhe atassem ao pescoço uma pedra de moinho e o lancassem ao mar do que escandalizar um só destes pequeninos."

JoaoMiranda disse...

A pena como retribuição está mais próxima do liberalismo do que a pena como forma de prevenção. A retribuição pressupõe uma compensação à vítima, está próxima do negócio privado e respeita a individualidade de cada um. A prevenção pressupõe engenharia social e tende a ignorar cada uma das vítimas em particular.

Anónimo disse...

"Indique-me um estudo sério que relate a diminuição da criminalidade em estados (por exemplo norte americanos) onde se aplica a pena de morte - não me vai, de resto, convencer que os Estados europeus onde não se aplica a pena de morte têm mais criminalidade ou criminalidade violenta que Estados (por exemplo muçulmanos) onde se continuam a aplicar a pena de morte e outras penas desumanas;"

A ideia de que os criminosos, ao contrário dos comuns mortais, não reagem a incentivos e que a possibilidade de serem executados não tem um poderoso efeito dissuassor é que necessitaria de alguns estudos que a sustentassem (as comparações entre diferentes estados ou sociedades são descabidas - é delirante supor que um direito penal universal homogeneizasse as taxas de crime em todo o mundo).

O problema é que a pena de morte raramente é aplicada: a possibilidade para um condenado à morte de ser executado é baixíssima - mesmo em estados como o Texas. É mais perigoso fazer alpinismo do que estar no corredor da morte - as probabilidades de morrer são efectivamente maiores. Para alguém que esteja a premeditar um crime ou que o tenha cometido, ou até que esteja a aguardar a decisão final, a possibilidade de vir a ser executado num futuro previsível é tão baixa que acaba por ser negligenciável. Aliás, o que não faltam são estados americanos que reintroduziram a pena de morte e nunca a aplicaram.

É basicamente por isto que sou contra as reinstaurações da pena de morte: na modernidade, a sua aplicação obriga a um robusto garantismo e inúmeros cuidados, mas isso implicará que o ritmo das execuções seja tão baixo que o efeito dissuassor se perde. No fundo, acaba por ser como diz o sv: não se consegue demonstrar, na prática, os efeitos positivos que esta tem.

Anónimo disse...

Caro Rui: a teoria de Amurabi, do "dente por dente, olho por olho" está a regressar às sociedades modernas.

Certamente que não considera o povo inglês troglodita, pois foram os criadores da Magna Carta Libertatus lá pelos 1500. Pois eles, há uns 5 anos, levaram ao seu parlamento a reposição da pena de morte, e esta proposta pedeu com 40 % (quarenta por cento...).

Digo eu...

Saloio

Anónimo disse...

Aliás, caro Rui, como explicar que os crimes são cada vez mais odiendos (nomesdamente contra as crianças), e as penas são cada vez mais pequenas?

Saloio

Anónimo disse...

"Magna Carta Libertatus lá pelos 1500"

Lamento, caro Anonymous, mas a Magna Charta é de 1215 e não tem nada a ver com a pena de morte.

RA

Snowball disse...

"Não é meu hábito citar textos sagrados. Neste caso, prefiro o Evangelho Segundo S. Lucas, 17,2, a qualquer argumento económico ou filosófico. Jesus, que normalmente pregava perdão e misericórdia foi intransigente quanto a crimes contra crianças: "Melhor seria que lhe atassem ao pescoço uma pedra de moinho e o lancassem ao mar do que escandalizar um só destes pequeninos."

Também diz no Novo Testamento que até o demónio é capaz de citar as escrituras em seu favor.
E já agora, a imagem, em termos literais diz que seria melhor (para a sua alma) que o impedissem de o fazer, nem que para isso o tivessem de matar. Não diz que é melhor matá-lo depois dele pecar...
Mas isto é só uma imagem - é preciso saber interpretar...e não há pecado que Cristo não tenha perdoado.

"A ideia de que os criminosos, ao contrário dos comuns mortais, não reagem a incentivos e que a possibilidade de serem executados não tem um poderoso efeito dissuassor é que necessitaria de alguns estudos que a sustentassem (as comparações entre diferentes estados ou sociedades são descabidas - é delirante supor que um direito penal universal homogeneizasse as taxas de crime em todo o mundo)."

Claro que reagem a incentivos. Mas qual é o criminoso que parte do princípio que vai ser apanhado (i.e. que calcula correctamente essa probabilidade, que não é optimista)? Ainda por cima, a nossa racionalidade económica aplica-se a decisões económicas, não racionais. E mesmo Herbert Simon ganhou um nobel da economia ao demonstrar que o homem tinha uma racionalidade limitada.

Quanto ao post - a nossa teoria legal diz, e bem, que é 1000 vezes preferível não punir um culpado do que punir um inocente. A mesma cautela deve ser usada na pena de morte - quanto não é o dano de punir injustamente um inocente? Um preso injustamente, pode reaver a liberdade, pode ser indemnizado. A um morte o que se faz? Manda-se rezar missas?

SV disse...

«O problema é que a pena de morte raramente é aplicada: a possibilidade para um condenado à morte de ser executado é baixíssima - mesmo em estados como o Texas. É mais perigoso fazer alpinismo do que estar no corredor da morte - as probabilidades de morrer são efectivamente maiores.»

Já eu sou péssima com citações, mas há relativamente pouco tempo li alguém que a propósito disto dizia que os Estados que aplicam a pena de morte são os mais impiedosos facínoras, porque não só matam como sujeitam as suas vítimas a anos de tortura. Dizia o autor que estes Estados se assemelham aos assassinos que prendem as vítimas e lhes dizem: "olha, sabes que vais morrer no dia tal...." e os vão lembrando disso diariamente.

E nem me velham agora dizer que o problema é dos sistemas de recurso que atrasam a execução das penas, porque isso não seria sequer argumento que qualquer pessoa que acredite num Estado de Direito se dignaria comentar.

De resto, a justiça dos homens é, claramente, falível. À pergunta, quem sou eu para ceifar a vida a alguém? Acrescento outra: seria eu capaz de viver com a possibilidade de ter morto um inocente (ainda que tivesse usado de todas as cautelas)?
De todo o modo ainda não obtive resposta quanto à justificação da pena de morte: tem justificação ao nível dos princípios?; conseguem-me demonstrar que acarreta qualquer tipo de benefício social?

Metralhinha disse...

Concordo com a proposta e proponho o Autor para carrasco da primeira execução que se vier a realizar, com transmissão pública e em directo em todos os media.

Anónimo disse...

Quem pondera correr um risco para obter um benefício não tem apenas em conta a natureza do risco, mas a sua probabilidade. Entre o risco remoto de ser executado e a quase certeza de passar uns meses na cadeia, não sei qual seria mais dissuassor para o nosso potencial criminoso.
Por isso, acho que regra geral os castigos deviam ser tanto quanto possível brandos, mas também tanto quanto possível inevitáveis.