31 agosto 2025

Miguel Milhão (10)

 (Continuação daqui)



10. D. Dolores


Falámos sobre vários aspectos da cultura portuguesa. Nesta matéria, enfatizei o carácter católico da nossa cultura que, na minha opinião é, de longe, o principal obstáculo ao triunfo do liberalismo em Portugal que o Miguel Milhão visa conseguir.

Por exemplo, foi mencionado o carácter feminino da cultura católica e, por implicação, da cultura portuguesa, mas não houve oportunidade para desenvolver o assunto, o que faço agora.

Enquanto na cultura protestante o centro da religiosidade cristã é o próprio Cristo (princípio protestante Solo Christo), a religiosidade popular católica dá centralidade à figura da sua Mãe, Maria. 

É um daqueles paradoxos em que a cultura católica é prolixa. Maria não é deusa nenhuma. Deus é o seu filho, Jesus Cristo. Maria é importante apenas por ser Mãe de quem é. Não obstante, a religiosidade popular católica dá mais importância a Maria do que a Cristo. Quem tem uma dificuldade na vida vai mais facilmente pedir um favor à Virgem Maria em Fátima do que ao Cristo-Rei em Almada.

É como se a D. Dolores fosse mais importante do que o seu filho, Ronaldo, quando a realidade é exactamente ao contrário. D. Dolores não é nenhuma craque de futebol. A importância da D. Dolores é uma importância derivada, resulta de ser mãe de quem é.

Este aparente paradoxo é fruto da esperteza popular e da figura do chico-esperto. Os primeiros chico-espertos da cultura portuguesa (e de todos os países sujeitos à influência dominante do catolicismo) foram os padres, eles próprios oriundo do povo.

Se um admirador qualquer quiser pedir uma camisola autografada ao Cristiano Ronaldo e se dirigir directamente a ele, tem poucas probabilidades de ser atendido porque o Ronaldo recebe diariamente milhões de pedidos idênticos. Mas se esse admirador conseguir convencer  D. Dolores da emoção e da importância que teriam para ele uma camisola do Ronaldo, é praticamente certo que a vai receber. Aos ouvidos de um filho a voz da mãe soa mais forte do que como um mero pedido. Soa como uma ordem. A voz da mãe é a voz que deu ao filho mais ordens em toda a sua vida ("Senta-te à mesa!, "Vai lavar os dentes!", "Não comas com as mãos!", "Não bebas álcool!", "Vai fazer essa barba!", "Atravessa a rua na passadeira!").

Portanto, segundo esta racionalidade, quem quiser obter um favor de Cristo, o melhor é dirigir-se à Mãe. No primeiro milagre de Cristo, o das Bodas de Caná, Maria faz saber a Cristo que o vinho acabou, um pedido implícito para que ele o faça aparecer de novo. Inicialmente, ele mostra-se relutante dizendo que ainda não tinha chegado a sua hora. Mas, pouco depois, acaba por ceder. Vindo da Mãe, aquilo era mais do que um pedido. Era uma ordem.

Em resultado desta interpretação popular da religiosidade cristã promovida pelos padres, a figura da Mulher e da Mãe ganhou uma centralidade na cultura católica que não tem na cultura protestante. A própria Igreja Católica é a figura teológica de Maria, sendo servida por uma imensidão de homens - os padres. O catolicismo põe a Mulher num pedestal e o homem a servi-la.

Para a própria cultura popular do catolicismo, os custos deste short-cut - o de chegar a Deus (Cristo) por intermédio de uma pessoa, um ser humano (Maria) - foram enormes. Criou uma cultura de intermediários ou intercessores, uma cultura de cunhas que aos olhos da modernidade protestante é uma cultura de corrupção. Esta é uma cultura capaz de corromper até Deus. Maria é a principal corruptora activa, seguida pelos santos e pelos padres - naturalmente, tudo gente que o protestantismo não venera.

Quando a sociedade se laicizou e os padres perderam parte do seu poder e influência em favor dos juristas - Em Portugal, a governação do Marquês, ele próprio um estudante de Direito, embora falhado, foi decisiva nesta transição -  não foi apenas a toga, a organização corporativa e o cerimonial que os juristas herdaram dos padres no exercício das suas funções. Herdaram também a cultura do chico-esperto, que é a cultura do atalho, do golpe, da esperteza saloia e da corrupção.

Ainda agora o GRECO (Grupo de Estados Contra a Corrupção do Conselho da Europa) divulgou o seu quarto relatório de avaliação relativo a Portugal (cf. aqui). Em 2015, o GRECO (de que Portugal faz parte) elaborou 15 medidas anti-corrupção para serem aplicadas a deputados (5), juízes (6) e magistrados do Ministério Público (4). Os deputados (na maioria, juristas), os juízes e os magistrados do MP são os combatentes da corrupção no país, uns fazendo as leis anti-corrupção e os outros aplicando-as.

Pois, dez anos depois, em 2025, estes combatentes da corrupção só tinham implementado cinco das 15 medidas recomendadas pelo GRECO, um terço do total. A este ritmo, a implementação de todas as medidas vai demorar 30 anos. É caso para dizer: "Em Portugal, os combatentes da corrupção gostam muito de corrupção", caso contrário já teriam acabado com ela no seu próprio meio.   

Ora, um regime político liberal com uma justiça corrupta é uma impossibilidade prática.

(Continua acolá)

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