Narrativas e Tribalismo: a Morte do Debate Racional
Vivemos tempos em que as grandes questões do nosso presente — o aquecimento global, a pandemia de Covid-19, a guerra da Ucrânia — deixaram de ser discutidas num registo racional e informado, como preconizava o ideal iluminista. Em vez disso, circulam narrativas parcelares, simplificações emotivas de realidades complexas, às quais as pessoas aderem segundo a filiação da sua tribo: partidária, religiosa, profissional ou sindical.
O resultado é um tribalismo renovado, que já não se ancora apenas em laços de sangue ou território, mas sobretudo em identidades ideológicas e narrativas mediáticas.
O caso do aquecimento global
No debate sobre as alterações climáticas, o espaço para ponderação e dúvida foi reduzido a pó. Para uns, negar o carácter antropogénico do aquecimento global é negar a ciência; para outros, a narrativa dominante não passa de alarmismo manipulado ao serviço de interesses económicos e políticos. O que deveria ser um debate científico e político racional converte-se numa batalha tribal, onde qualquer nuance é vista como traição.
O caso da pandemia
Durante a Covid-19, assistiu-se ao mesmo padrão. De um lado, a narrativa do “seguir a ciência”, legitimando confinamentos e vacinação em massa; do outro, a narrativa do “autoritarismo sanitário” e da defesa da liberdade individual contra excessos governamentais. Entre estas trincheiras não houve espaço para um debate equilibrado sobre proporcionalidade de medidas, efeitos colaterais e alternativas. As redes sociais funcionaram como arenas tribais, onde cada gesto, cada opinião, era lido como uma prova de pertença.
O caso da Ucrânia
A guerra na Ucrânia expôs a mesma lógica binária. Para uns, trata-se da defesa da democracia contra uma agressão russa; para outros, de uma guerra por procuração, alimentada pela OTAN, onde a Rússia reage à expansão ocidental. Outra vez, o complexo é reduzido ao simplismo narrativo. Quem questiona um lado é imediatamente rotulado de simpatizante do outro.
Do debate ao espectáculo político
Neste contexto, a verdadeira política desaparece. Em vez de fóruns de discussão e procura de consensos, temos apenas espectáculo político, destinado a reforçar identidades tribais e a mobilizar emoções. O Parlamento, os media e sobretudo as redes sociais tornaram-se arenas de gladiadores, onde o que importa não é esclarecer mas atacar, não é convencer mas marcar território.
O eclipse das Luzes
O mais inquietante é que estas narrativas, ao serem parcelares e emotivas, afastam-nos das luzes da racionalidade. O ideal iluminista, que sonhava com sociedades capazes de debater com base na razão e no conhecimento, parece morto ou em estado de coma. Em seu lugar, ergue-se uma política tribal, previsível nas suas reações, impermeável ao diálogo, alimentada por algoritmos que reforçam o viés de cada grupo.
Epílogo
A força das narrativas é inevitável — os humanos sempre viveram delas. Mas quando se tornam substituto do debate e arma de tribalização, deixam de iluminar e passam a ofuscar. Talvez o maior desafio do nosso tempo seja reencontrar um espaço público onde a razão volte a ter lugar. Sem isso, restar-nos-á apenas o espectáculo tribal, cada vez mais ruidoso e cada vez menos político.
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