(Continuação daqui)
XXXVII. Milagres
Na recente palestra que proferiu na Gulbenkian acerca da sua experiência à frente do combate à pandemia, o Almirante Gouveia e Melo disse, a certa altura, que uma das coisas que mais lamentava é que, daquilo que foi feito, nada tivesse ficado como lição para o futuro (cf. aqui, min. 18:35).
Trata-se da expressão de uma das principais características de um povo de tradição católica - a sua radical imprevidência. Esta é uma característica que distingue a elite católica do povo, sendo que, em democracia é o povo que está aos comandos, não a elite.
A cultura católica é uma cultura conservadora para a qual Deus está, para além das Escrituras, também na Tradição. Ora a Tradição invoca o passado, que é para onde o povo católico está constantemente voltado, ignorando o futuro. "O futuro a Deus pertence", diz o ditado popular e, por isso, não interessa pensar o futuro porque ele é radicalmente imprevisível, sendo determinado por Deus.
Buscar no passado lições para projectar e, de alguma forma, controlar o futuro é algo que está totalmente fora do radar cultural de um povo de tradição católica. Daí o desalento do Almirante Gouveia e Melo.
Mas o Almirante não está sozinho. Os economistas liberais têm fortes razões para partilhar o desalento do Almirante
Em 1973 Portugal fez capa no Financial Times que considerou o país um "milagre económico", uma designação que ficou para a história económica nacional no período 1950-73 (cf. aqui). Nesse mesmo ano iniciou-se um outro milagre económico no Chile (cf. aqui). Por essa altura, já muito se falava de um milagre económico em Espanha (cf. aqui). E, em 1968, tinha-se iniciado um outro milagre económico, desta vez no Brasil (cf. aqui).
Aquilo que unia todos estes milagres económicos é que ocorriam em países católicos, e não em países protestantes, talvez porque os protestantes, não acreditando nos Santos nem na Virgem, mas apenas em Cristo (o princípio protestante "Solo Christus") têm menos fazedores de milagres do que os católicos.
Mas havia uma segunda característica que era comum a todos estes milagres económicos. Eles ocorreram sob regimes militares ou de inspiração militar - Franco em Espanha, Pinochet no Chile, Costa e Silva no Brasil, Salazar em Portugal.
Salazar não era um militar mas chegou ao Governo (ministro das Finanças e depois primeiro-ministro) ainda sob a ditadura militar saída da revolução de 28 de Maio de 1926, aí se mantendo após a aprovação da Constituição de 1933.
Foi Salazar que, naquela sua forma límpida de falar e escrever, exprimiu um dos segredos, talvez o maior, de todos estes milagres económicos - o segredo do Estado Subsidiário, um Estado pequeno, forte e distante, um Estado que só entra em cena, e mesmo aí relutantemente, quando os particulares, através dos seus arranjos espontâneos (v.g., famílias, empresas, cooperativas, igrejas, associações), não fazem aquilo que precisa de ser feito.
Disse ele num discurso pronunciado no início da década de 1930:
"Sou absolutamente hostil a todo o desenvolvimento da actividade económica do Estado em todos os domínios em que não esteja demonstrada a insuficiência dos particulares".
Está visto que, na Economia, como no combate à pandemia, o povo português não aprende nada com o passado. É assunto para a elite, da qual, obviamente, o Almirante faz parte.
Sem comentários:
Enviar um comentário